Refrigerantes e bebidas alcoólicas têm isenção de R$ 9,5 bilhões em menos de uma década

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Coca-Cola e Ambev lideram a lista de fabricantes de refrigerantes e outras bebidas açucaradas que receberam isenções fiscais; com a fabricação de cervejas, a Ambev ainda levou quase R$ 880 milhões em impostos não cobrados

Nos últimos meses, as famílias brasileiras voltaram a conviver com o fantasma da inflação de tempos pandêmicos, quando o preço dos alimentos disparou nos supermercados e, principalmente, nos açougues. A inflação de alimentos escancara a falta de políticas alimentares perenes, que sejam capazes de garantir o direito à alimentação adequada e saudável à população. Enquanto isso, fabricantes de bebidas açucaradas e alcoólicas acumularam, desde 2015, R$ 9,55 bilhões em renúncias fiscais.

Levantamento feito pelo Joio, com dados do Ministério da Fazenda, aponta que o governo federal deixou de arrecadar R$ 8 bilhões das fabricantes de refrigerantes e outras bebidas não alcoólicas entre 2015 e junho de 2024. No topo da lista está a Recofarma, da Coca-Cola, com R$ 4,55 bilhões em benefícios fiscais. A empresa fabrica na Zona Franca de Manaus o xarope (concentrado) que abastece a produção de refrigerantes da Coca-Cola em todo o Brasil.

Logo atrás vem a Arosuco, empresa que faz parte do grupo Ambev, com uma renúncia fiscal de R$ 2,2 bilhões. Assim como a concorrente tem a Recofarma, a Ambev usa a Arosuco para fabricar o xarope de seus refrigerantes – marcas muito conhecidas do consumidor, como Guaraná Antarctica e Sukita. Em terceiro lugar está outra empresa ligada à Coca-Cola, a Norsa Refrigerantes S.A, que obteve mais R$ 529 milhões em isenções de impostos para o grupo – a Norsa integra o Grupo Solar, que controla a distribuição de produtos da corporação no Nordeste. Pertecente ao senador Tasso Jereissati, a companhia obteve a maior parte de suas isenções por estar localizada na área da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, a Sudene.

“Até pouco tempo atrás, os benefícios fiscais eram tratados quase como um patrimônio privado. Ou seja, a empresa tinha um benefício fiscal e absorvia aquele benefício como um ganho dela. Tanto que não se dava transparência. Não se dizia à sociedade quais eram as empresas que tinham um benefício, e alegava-se que era uma informação protegida por sigilo fiscal. Isso mudou muito recentemente, porque passou-se a considerar que essa empresa está, de alguma forma, operando com recursos públicos”, explica Dão Real, presidente do Sindifisco, entidade sindical representativa dos auditores-fiscais da Receita Federal.

De fato, houve um avanço em termos de transparência com a divulgação de dados sobre as empresas beneficiárias, que já nos permitiram fazer um primeiro levantamento sobre a isenção de impostos para fabricantes de ultraprocessados. Mas os fundamentos que deram suporte a cada uma dessas renúncias fiscais ainda não foram esclarecidos pelo governo. 

O que se sabe é que os negócios das gigantes de bebidas açucaradas vão de vento em popa, com o Brasil puxando o crescimento da Coca-Cola na América Latina. Em 2024, o faturamento global do grupo foi de US$ 47,1 bilhões. Já a Ambev teve um lucro de R$ 14,8 bilhões no ano passado.

A propósito, nem só de açúcar vivem os produtos da Ambev. As fabricantes de malte, cervejas e chopes abocanharam quase R$ 1,4 bilhão em renúncias fiscais, com a Ambev liderando a lista com o montante de R$ 878,6 milhões distribuídos entre duas empresas do grupo, a Ambev S.A. e a Arosuco Aromas e Sucos LTDA. O terceiro lugar do ranking ficou com a Heineken, com longínquos R$ 124,6 milhões.

Já as fabricantes de bebidas destiladas tiveram R$ 135,9 milhões em isenções de impostos. A Pernod Ricard Brasil, que produz as bebidas das marcas Absolut, Jameson e Orloff, entre outras, lidera essa lista com R$ 68,9 milhões. As vinícolas completam o grupo analisado pela reportagem, com R$ 23,8 milhões em renúncias fiscais.

Um estudo da Fiocruz, feito em parceria com as organizações ACT Promoção da Saúde e Vital Strategies, apontou que o consumo de bebidas alcoólicas representou um custo de R$ 18,8 bilhões ao país em 2019. Do total, R$ 1,1 bilhão são custos federais diretos com hospitalizações e procedimentos ambulatoriais no Sistema Único de Saúde (SUS). Ou seja, os benefícios concedidos apenas à fabricação de cervejas e chopes superam aquilo que esses produtos custam ao SUS. 

Nos custos indiretos relatados na pesquisa, que somaram R$ 17,7 bilhões, estão as perdas de produtividade por mortalidade prematura, licenças e aposentadorias precoces decorrentes de doenças associadas ao consumo de álcool, perda de dias de trabalho por internação hospitalar e licença médica previdenciária. O estudo demonstrou ainda que, no Brasil, 12 mortes por hora são decorrentes do consumo de álcool.

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Como funciona a renúncia fiscal?

O objetivo da renúncia fiscal é produzir um determinado ganho público – um ganho em benefício da sociedade. Em tese, funciona assim: o Estado abdica de arrecadar impostos em troca de alguma contrapartida, que pode ser de diferentes tipos. Há renúncias de natureza econômica, no sentido de gerar atividade econômica em locais remotos, que sem o incentivo teriam dificuldades em atrair investimentos. Deveria ser o caso da Zona Franca de Manaus (ZFM), que ainda hoje mantém isenções fiscais, como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) zerado.

Outra contrapartida pode ser o compromisso de setores e empresas com a abertura de postos de trabalho, um retorno social interessante ao governo e à população. Nesse caso, em teoria, o governo passa a arrecadar em outro lado, com o recolhimento de direitos trabalhistas, ou deixa de gastar em benefícios sociais como o Bolsa Família. 

Ou, ainda, as isenções podem se prestar à “substituição” de uma política pública. Por exemplo, atividades filantrópicas na área da educação, da assistência social e da saúde, nas quais as empresas beneficiadas pelas isenções fiscais acabam suprindo uma parcela dos deveres que seriam do Estado.

“O primeiro efeito da isenção é você deslocar a capacidade de decisão do investimento da mão do Estado para a mão da iniciativa privada”, define João Pedro Simões Magro, pesquisador do Instituto Fome Zero (IFZ). Para ele, uma contrapartida esperada da concessão de renúncias fiscais a indústrias alimentícias é a redução de preços ao consumidor, uma vez que as empresas teriam maior margem de operação. Ou, até mesmo, a geração de novos empregos com o crescimento do setor e o financiamento de cozinhas comunitárias. Mas falta transparência sobre o que está e não está sendo realizado com recursos públicos. 

O problema mora na negociação e no monitoramento dessas contrapartidas, sendo este último uma atribuição dos tribunais de contas estaduais e federal. Pouco se sabe sobre os acordos firmados entre governos e as empresas beneficiárias em relação ao retorno social das isenções que recebem. 

“Falta um sistema de controle. É aí que se criam as excrescências, por exemplo, de benefícios fiscais com prazos indeterminados. A empresa ganhou aquele benefício fiscal e não tem um prazo para apresentar as contrapartidas. O benefício só vai se renovando, o que é um equívoco. Na verdade, poderíamos dizer que até é inconstitucional”, avalia Dão Real.

A tese mais aceita entre especialistas é de que as renúncias fiscais deixaram de ser uma política de interesse público para ser uma política de distribuição de benefícios. O Estado estaria concedendo benefícios em função de articulações políticas de determinados setores. A máxima é a mesma para todo o lobby que se vê no Congresso Nacional: quanto mais forte é o setor, mais benefícios fiscais ele recebe. 

“Quando se diz que uma empresa obteve um benefício fiscal, de fato, ela ficou com um recurso público na mão dela. E esse recurso público, que naturalmente seria do Estado e que se transformaria em políticas públicas, ficou privatizado na mão de um determinado setor econômico. De acordo com os princípios da administração pública e com os princípios constitucionais, ao ter na sua mão um recurso público, esse setor deveria prestar contas de algum retorno para a sociedade”, pontua o presidente do Sindifisco.

A reforma tributária, aprovada em dezembro, estipula a extinção de boa parte das renúncias fiscais de IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS até 2032. Isso porque o país passará a ter novos tributos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS). E para esses impostos não pode haver isenções fiscais, exceto as renúncias previstas na Constituição, como os benefícios fiscais para o transporte público. 

A proposta é acabar com a “guerra fiscal” de estados e municípios, que concedem isenções como se fossem favores políticos ou para atrair novas empresas para seus territórios. A partir da reforma, todos os entes federativos deverão cobrar as mesmas alíquotas em impostos, exceto a Zona Franca de Manaus. E é aí que as fabricantes de bebidas ainda poderão se refestelar. 

No caso da Coca-Cola, investigações do Joio mostram que a corporação não paga impostos na Zona Franca, mas cobra créditos do governo federal como se recolhesse tributos. Ou seja, pede a devolução de valores que nunca pagou. “A sociedade brasileira está financiando, está pagando a produção da Coca-Cola. Cada um de nós paga para a Coca-Cola produzir e nos vender o refrigerante”, resume Dão Real.

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O que poderia ser feito com os impostos?

Dados do governo federal apontam que o orçamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) chegou a R$ 1 bilhão em 2023, maior volume de recursos da história do programa. As isenções fiscais concedidas a fabricantes de bebidas açucaradas e alcoólicas desde 2015 teriam financiado mais de nove anos de PAA em seu ano-recorde.

Em fevereiro, o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), Wellington Dias, anunciou o investimento de R$ 500 milhões para o PAA em 2025. Com esse valor em mente, os R$ 9,5 bilhões renunciados das empresas analisadas poderiam suprir 19 anos de recursos para o programa. São quase duas décadas de verba para o PAA em impostos não arrecadados.

Caso fossem agregados ao orçamento público, os impostos também poderiam fomentar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Em 2024, o Ministério da Educação destinou R$ 5,3 bilhões ao programa, que geralmente ainda conta com aportes de governos estaduais e prefeituras para fornecer a merenda nas escolas públicas. 

Um estudo do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), divulgado em 2024, mostra que o orçamento do Pnae deveria ter sido reajustado para R$ 9,9 bilhões para compensar os 42% de perda do poder de compra nos últimos 14 anos. Os recursos dados a fabricantes de bebidas açucaradas e alcoólicas desde 2015 poderiam financiar por quase dois anos o reajuste necessário para o Pnae.

Outra possibilidade, diz João Pedro Magro, seria a criação de fundos para investimento em políticas públicas de adaptação climática, como um “fundo alçapão”, do qual só se poderia resgatar os rendimentos em cima do valor aplicado. “E se tivéssemos um fundo desses, por exemplo, para desenvolver uma agricultura sustentável? São recursos que estariam disponíveis para estimular aquilo que é de maior interesse da população brasileira, e não das indústrias.”

Artigo Refrigerantes e bebidas alcoólicas têm isenção de R$ 9,5 bilhões em menos de uma década publicado em O Joio e O Trigo.

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