A Nestlé foi a maior beneficiada por renúncias fiscais ao longo de uma década, com mais de R$ 750 milhões não arrecadados em impostos
Os ovos de chocolate tomam conta dos corredores dos supermercados nesta época do ano. A prática virou tradição no Brasil, tanto é que já não causa surpresa se ver rodeado pelo plástico brilhante das embalagens nas semanas que antecedem a Páscoa. O surpreendente nos últimos tempos é a disparada dos preços e a contínua perda de qualidade dos produtos.
Uma pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) mostrou que o preço do ovo de chocolate subiu 9,52% em 2025 e acumula alta de 43% nos últimos três anos. Isso se deve à crise global de produção do cacau, que gerou uma demanda maior que a oferta e elevou os preços no mercado internacional. O resultado são preços mais altos para o consumidor brasileiro, mesmo quando se trata de doces que levam menos de 25% de cacau na composição, que é o percentual mínimo estipulado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para chocolates. Produtos sem o percentual mínimo de cacau não podem ser chamados de chocolate, mas de “produtos à base de chocolate”.
Na contramão, os fabricantes de chocolates, doces, biscoitos, bolachas e sorvetes acumulam R$ 3,3 bilhões em impostos federais que não foram pagos ao longo de uma década. Um levantamento feito pelo Joio, com dados do Ministério da Fazenda, aponta que esse é o valor total das renúncias fiscais entre 2015 e junho de 2024 para empresas cadastradas em três tipos de Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) analisados pela reportagem.
O recorte utilizado foram os CNAEs de fabricação de produtos derivados do cacau, de chocolates e confeitos, de biscoitos e bolachas, e de sorvetes e outros gelados comestíveis. Para se ter uma ideia, os impostos não arrecadados dessas indústrias seriam suficientes para cobrir, com sobra, o orçamento de 2025 do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), que está previsto em R$ 3 bilhões.
À frente da lista das isenções está o grupo Nestlé, com R$ 758 milhões divididos entre duas empresas. A Nestlé Nordeste Alimentos e Bebidas, sediada em Feira de Santana, na Bahia, acumulou a maior parte: R$ 756,2 milhões em isenção fiscal. O restante ficou com a Nestlé Brasil, que tem sede em São Paulo.
Do montante concedido à Nestlé Nordeste, R$ 732 milhões foram dispensados apenas pela localização geográfica da empresa, por meio de dedução fiscal da Sudene. Os incentivos são uma redução de 75% do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) sobre o lucro e a possibilidade de reinvestir 30% do IRPJ devido em projetos de modernização e expansão das operações.
A área de atuação da Sudene se estende por toda a região Nordeste, além de 249 municípios de Minas Gerais e 31 do Espírito Santo.
A escolha cuidadosa da localização de uma empresa não é uma jogada nova no mundo das corporações. Há muitos incentivos estaduais na balança, em uma “guerra fiscal” para ver quem leva mais empresas para o seu território. A Coca-Cola, por exemplo, poupou R$ 540 milhões em uma década apenas com incentivos concedidos pelo governo da Bahia.
Na esfera federal, a isenção de impostos como Sudene e Sudam – que engloba toda a Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão) – representa bilhões de reais que deixam de entrar todos os anos nos cofres públicos. Sem falar na Zona Franca de Manaus, onde Coca-Cola e Ambev, por exemplo, beneficiadas pelas isenções fiscais, produzem o xarope (concentrado) de refrigerante que abastece todo o sistema das corporações no Brasil.
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Política pública para quem?
De acordo com a lei de Responsabilidade Fiscal, as renúncias só podem ser concedidas mediante compensação social. Ou seja, a empresa que tem isenção de impostos precisa investir em uma contrapartida de benefício público, que pode ser geração de empregos ou programas sociais de saúde e educação, por exemplo. Mas falta transparência na negociação entre poder público e setor privado e no monitoramento dessas contrapartidas.
“As leis de concessão de renúncia de receita estão sendo aprovadas muito mais em função da pressão política dos grupos beneficiados do que, efetivamente, com rigor quanto às metas, aos objetivos e ao que diz o artigo 14 da lei de Responsabilidade Fiscal. Porque toda política pública tem que ser avaliada e monitorada, para ver os resultados dela”, afirma Rosa Angela Chieza, professora de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretora de educação fiscal do Instituto de Justiça Fiscal (IJF).
Por meio de lobby e jogos políticos, as corporações têm vantagem na corrida por benefícios fiscais, enquanto a população “paga dobrado” pelos produtos das indústrias. Em resumo, o brasileiro paga pela produção dos ultraprocessados, por meio dos impostos não arrecadados. Depois, paga para comprá-los. E, por fim, pode arcar com a conta de tratamentos de saúde.
Na lista das empresas beneficiadas pelas isenções analisadas pelo Joio figuram outras multinacionais, como Cargill, Barry Callebaut, Mondelez, Ferrero e Unilever. Logo atrás da Nestlé, a Cargill recebeu R$ 576,9 milhões em renúncias fiscais desde 2015. A Barry Callebaut completa o pódio em terceiro lugar, com R$ 477,8 milhões, seguida pela Mondelez Brasil Norte Nordeste com R$ 380,6 milhões. Ferrero (fabricante da Nutella e do Ferrero Rocher) e Unilever (dona da Kibon) aparecem entre as dez empresas com maiores isenções, com R$ 219 milhões e R$ 121 milhões, respectivamente.
O que tem no clássico sorvete de flocos?
Errou quem disse creme de leite, um tantinho de açúcar e chocolate. Essa “delícia” ultraprocessada é composta por: açúcar, gordura vegetal, leite em pó desnatado, açúcar líquido invertido, xarope de glicose, soro de leite, óleo vegetal, cacau em pó, emulsificantes mono e diglicerídeos de ácidos graxos e lecitina de soja, estabilizantes alginato de sódio e fosfato dissódico e aromatizantes. Vai uma bola?
O caso da Mondelez se assemelha ao da Nestlé Nordeste, pois está localizada em Vitória de Santo Antão, em Pernambuco. A maior parte das isenções que recebeu veio da Sudene, na ordem de R$ 370 milhões, por ser uma empresa sediada no Nordeste.
De acordo com dados do governo de Pernambuco, a Mondelez ainda é beneficiária de isenção de impostos estaduais pelo Programa de Desenvolvimento do Estado de Pernambuco (Prodepe). Por se tratar de uma agroindústria localizada na Zona da Mata do estado, a empresa pode receber um incentivo fiscal de até 85% sobre o valor devido de ICMS.
A Unilever Brasil Gelados do Nordeste, que era localizada em Pernambuco, também foi beneficiária da isenção de impostos estaduais até a baixa da empresa, em 2022. Fabricante da marca de sorvetes Kibon, a Unilever anunciou o encerramento da fábrica em Jaboatão dos Guararapes em 2020, transferindo as operações para a fábrica de Valinhos, no interior de São Paulo, onde hoje são produzidos todos os sorvetes da marca.
Em ambos os casos, não há informações sobre os valores renunciados, mas o acordo de isenção estadual da Mondelez está previsto para durar até 2032. Se não há como acessar a prestação de contas das empresas com o poder público, como fiscalizar se as contrapartidas estão sendo cumpridas?
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, divulgada pelo IBGE, mostram que o Nordeste fechou 2024 com uma taxa de desemprego de 8,6%, a maior do país. É claro que isso não é suficiente para afirmar que as renúncias fiscais não geraram novos postos de trabalho, mas serve como indicativo de que há muitas lacunas que o poder público precisa preencher. E, sem orçamento, quase nada sai do papel. Passar a receber impostos devidos pode ser uma ferramenta valiosa para ampliar a atuação do Estado.
Lista de ingredientes: Açúcar, farinha de TRIGO, LEITE em pó magro, manteiga de cacau* , gorduras vegetais (palma, shea), pasta de cacau*, xarope de glucose, soro de LEITE filtrado em pó, matéria gorda LÁCTEA anidra, cacau magro em pó* , emulsionante (lecitinas), levedante (carbonatos de sódio).
A Nestlé tem isenção para fabricar produtos que dificilmente podem ser encarados como chocolate, mesmo em linhas mais caras.
Inimigos da saúde e dos cofres públicos
Os benefícios fiscais concedidos à agroindústria não começam nem terminam nas fábricas de biscoitos, produtos à base de cacau e sorvetes. Mesmo que os ultraprocessados, com exceção da margarina, tenham ficado de fora da alíquota zero da nova cesta básica, toda a cadeia produtiva seguirá beneficiada pelos subsídios dados ao agronegócio.
“Muitos ingredientes dos ultraprocessados, como commodities agrícolas, têm produção fortemente subsidiada, e setores como os de refrigerantes beneficiam-se de renúncias fiscais na fabricação de xaropes, contribuindo para a redução de seus preços comparativamente aos preços de produção de alimentos diversificados, frescos e minimamente processados”, destaca Eduardo Nilson, pesquisador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e da Fiocruz Brasília.
Os preços dos ultraprocessados no Brasil são, em média, mais baratos que os de alimentos frescos e minimamente processados. Isso pode empurrar grande parte da população, especialmente famílias de baixa renda, a consumir produtos nocivos à saúde.
Para Nilson, existe uma falsa afirmação de que os ultraprocessados ajudariam a garantir a segurança alimentar e nutricional, usada por representantes das indústrias na construção do lobby contrário à tributação desses produtos. “A exemplo de outros produtos nocivos à saúde, como o tabaco e as bebidas alcoólicas, os ultraprocessados devem pagar pelas externalidades negativas causadas pelo seu consumo.”
Uma crescente base de evidências associa o consumo de ultraprocessados a pelo menos 32 desfechos negativos de saúde, incluindo vários tipos de câncer e doenças cardiovasculares, respiratórias, gastrointestinais e metabólicas, além de impactos na saúde mental. Estima-se que 57 mil mortes prematuras por todas as causas sejam atribuíveis ao consumo desses produtos anualmente no Brasil. E ensaios clínicos já comprovaram sua associação com o ganho de peso corporal.
Dados compilados pelo Instituto Desiderata com informações do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) mostram que mais de 21% das crianças entre 6 meses e 2 anos consumiram biscoitos recheados, doces ou guloseimas regularmente em 2024. Os efeitos desse consumo provavelmente só aparecerão alguns anos depois.
“Ao estarem associados ao risco de diferentes problemas de saúde, particularmente doenças crônicas não transmissíveis, há potencialmente grandes impactos ao SUS e à economia em geral em função dessa morbimortalidade associada”, completa o pesquisador.
Uma pesquisa realizada por Instituto Desiderata, Nupens e Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura (Palin) da Fiocruz Brasília, publicada em junho de 2024 e da qual Nilson fez parte, estimou que os custos atribuíveis à obesidade infantojuvenil no SUS, entre 2013 e 2022, totalizaram R$ 225,7 milhões. Só em 2023, as fabricantes de chocolates, biscoitos e sorvetes somaram R$ 515,5 milhões em isenções fiscais federais, o maior volume registrado em um ano, de acordo com os dados disponibilizados pelo Ministério da Fazenda.
Portanto, se os impostos referentes a apenas um ano tivessem sido pagos, o montante poderia financiar o tratamento de crianças com obesidade por mais de duas décadas no SUS.
Em outro estudo, em parceria com a ACT Promoção da Saúde, Nilson investigou os custos da mortalidade prematura atribuíveis ao consumo de ultraprocessados. O relatório, divulgado em novembro de 2024, mostra que as mortes ligadas ao consumo desses produtos custam mais de R$ 9,2 bilhões por ano ao SUS.
Na teoria, a reforma tributária deve acabar com boa parte das renúncias fiscais federais e estaduais até 2032. O país passará a operar com novos impostos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS). Sobre eles não pode haver isenções fiscais, exceto aquelas previstas na Constituição Federal. Ainda assim, restam alguns anos pela frente com a manutenção dos benefícios fiscais atuais.
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Artigo Fabricantes de chocolates, biscoitos e sorvetes têm mais de R$ 3 bi em isenção de impostos publicado em O Joio e O Trigo.
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