Privatização, privilégio, racismo e perseguições: conheça a Esalq, que forma quem defende o agro

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Na Escola de Agricultura da USP, o financiamento privado de pesquisa é histórico. No campus, a “tradição esalqueana”, baseada no trote e na relação com ex-alunos, sustenta o ensino voltado para o agronegócio. Resistência existe, mas é desafio

Em um intervalo de almoço na Arado, uma das mais tradicionais repúblicas de estudantes da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), campus da Universidade de São Paulo (USP) em Piracicaba, Douglas* foi surpreendido por uma cifra. Era o valor do salário de um ex-morador da república e então representante de vendas da agroquímica Bayer – que, na ocasião, filava uma refeição na Arado.

“O salário dele era astronômico”, lembra Douglas. “Cinquenta mil reais, para ser mais exato.” O holerite do veterano não foi exibido na república por mera ostentação. “Na época, ele tava nessa de me convidar para trabalhar lá. Era meio que ‘ah, olha o que você pode conseguir.’”

Para Douglas, as repúblicas funcionam como uma bolha. “Ex-moradores que são membros de diferentes empresas estão sempre indo conhecer quem vai entrar. Muitos deles falam em contratar ou, pelo menos, indicar para a empresa que trabalham”, conta. Recém-formado em engenharia agronômica na Esalq, Douglas pediu para que sua identidade fosse preservada. Ele teme se queimar nessa bolha. 

O curso mais antigo da escola, e com o maior número de vagas, é justamente o de engenharia agronômica. Além dele, a Esalq reúne graduações em administração, ciências biológicas, ciências dos alimentos, ciências econômicas, engenharia florestal e gestão ambiental. Também há uma licenciatura em ciências agrárias.

“A Esalq é o centro do poder do agronegócio. O que o agronegócio quer fazer com repercussão, usa a Esalq”, avalia um professor aposentado da instituição, que também preferiu não se identificar na reportagem. “As diferentes administrações da Esalq foram intimamente ligadas à defesa do setor”, completa.

Fundada em 1964, a Arado é uma das repúblicas “azulonas” da Esalq. A alcunha define os alunos conservadores, categorizados como “azuis”, e remete ao posicionamento político durante a ditadura militar. Segundo Douglas, que viveu na república por dois anos e meio, a divisão envolve também uma visão ideológica bastante otimista sobre a atividade agrícola no Brasil. Ele aponta que boa parte das repúblicas também se engaja na defesa “das grandes empresas”. Em contrapartida, alternativas ao modelo de produção do agronegócio costumam ser alvo de chacota por parte desse grupo de estudantes. 

De acordo com Douglas, o fenômeno ocorre principalmente durante as aulas da disciplina de Sociologia e Extensão Rural. “É muito evidente o jeito que as pessoas dessas repúblicas levam a aula. Zoação, ficam no celular, vão embora. São aulas que têm palestras sobre agroecologia e movimentos sociais. Aí você sai e vê gente da turma do lado de fora, criticando.”

A Extensão Rural é uma das áreas abrangidas pelas ciências agrárias e consiste na educação informal continuada de famílias rurais, particularmente de pequenos agricultores, no cultivo, beneficiamento e comercialização de alimentos. Na Esalq, a disciplina contempla também o ensino de Sociologia. 

A bióloga Bruna Almeida, formada pela Esalq e que atualmente cursa agronomia na instituição, foi monitora da disciplina em questão. Ela concorda que as aulas costumam ser bastante hostilizadas pelos estudantes. E recorda a participação de um assentado da reforma agrária em uma delas. “Ele criticou a liberação de agrotóxicos e teve estudante que se sentiu no direito de levantar e questionar de forma muito agressiva.”

A bióloga afirma que grande parte dos estudantes acredita que o agronegócio é isento de problemas. “Tem esse bloqueio de entender que o campo brasileiro é muito diverso e, historicamente, um campo de exclusão. Que a reforma agrária não foi e não está sendo realizada da forma como deveria. E que temos uma herança da escravidão, dos grandes latifúndios e do modelo de produção”, analisa.

Esse bloqueio não é fruto do acaso, mas resultado da proximidade entre estudantes, professores e empresas na Esalq. Segundo Antônio Almeida, docente do Departamento de Economia, Administração e Sociologia (LES) da instituição, as repúblicas esalqueanas são espaços de recrutamento, seleção e treinamento para um conjunto de valores muito específicos. “Contra as mulheres, contra os negros, contra os ambientalistas, contra a esquerda…”, resume.

Há décadas o professor pesquisa o trote como uma política de controle da universidade. Ele destaca que, na Esalq, o trote é realizado por uma minoria barulhenta de alunos que vivem nessas repúblicas e, depois que se graduam, passam a fazer parte de um amplo networking, uma rede que compartilha desses mesmos valores e intimida quem os questiona.

“O trote é um grupo profissional que quer controlar o mercado de trabalho, a instituição e seu currículo. É a transformação da pessoa no membro de um coletivo opressivo, cuja hierarquia começa lá no aluno que está fazendo pedágio na esquina e, às vezes, termina no ministro da Agricultura”, afirma Antônio. 

Marya Fernanda Santos da Silva, atual presidente do Conselho das Repúblicas da Esalq, concorda que há um laço estreito entre a vida nas repúblicas e o mercado de trabalho. Ela explica que as repúblicas costumam ter grupos no WhatsApp com todos os ex-moradores, onde são enviadas vagas de emprego. 

A indicação para emprego é muito fácil. Se recebem uma vaga, mandam direto no grupo antes de divulgar na Esalq. Tem caso de gente que só falou ‘oh doutor, sou da república tal e tô enviando meu currículo porque gosto muito da empresa’. É uma coisinha a mais”, conta. 

Segundo Marya, essa preferência está relacionada a um conjunto de “habilidades” desenvolvidas pelo convívio em república: a responsabilidade com tarefas domésticas, a adaptação à vida em grupo e o respeito à hierarquia. “No mercado de trabalho, querendo ou não, tem essa verticalidade. A pessoa que está há mais tempo na empresa vai saber lidar com algumas coisas de uma forma melhor. Com certeza essa coisa de hierarquia influencia bastante”, acredita.

O professor Antônio Almeida, entretanto, destaca que a hierarquia nas repúblicas serve também para moldar os ingressantes aos valores do agronegócio. “Eu preciso de gente para expulsar posseiro, matar índio, derrubar a árvore, vender agrotóxico, não questionar a corrupção. O trote exige obediência e silêncio. É perfeito para esse tipo de situação”, afirma.

Um elo importante da rede corporativa esalqueana é a Associação de Ex-alunos da Esalq, a Adealq. Fundada em 1943, ela reúne um banco de dados com todos os mais de dez mil egressos do campus, registra repúblicas, promove encontros anuais  e divulga vagas de emprego. 

O site da Adealq mostra esalqueanos em diferentes partes do mundo. Na categoria “esalqueanos da firma” há um grupo que reúne cem egressos que trabalham na Bayer, e outro, com 12 membros, dos que trabalham na UPL, multinacional indiana que também fabrica e comercializa agrotóxicos. Segundo Antônio Almeida, essa rede também é bastante favorável à presença das grandes empresas no campus. “É um grupo totalmente pró a uma espécie de privatização da universidade”, opina. 

A relação entre grandes corporações de agrotóxicos e a Esalq não ocorre apenas pelo vínculo entre estudantes e egressos. A escola tem uma antiga e institucional proximidade com o setor. Essa proximidade, para Bruna, também tem papel importante na formação ideológica de quem frequenta a escola. “Não tem tempo de reflexão para um estudante saindo do ensino médio questionar se faz sentido essa presença tão massiva de empresas dentro da universidade”, pondera. 

O Joio passou os últimos dois meses investigando as relações corporativas na Esalq e seu impacto na formação ideológica dos estudantes, bem como o reflexo dessa formação no campo brasileiro. A reportagem visitou o campus de Piracicaba e entrevistou mais de 20 pessoas, entre alunos, ex-alunos, professores e pesquisadores. 

O resultado é um mergulho nos bastidores dos interesses privados, da violência, do racismo e também da resistência na mais importante faculdade de engenharia agronômica do país. 

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Empresas em todo o lugar

Na Esalq, e particularmente no curso de engenharia agronômica, os três pilares universitários – ensino, pesquisa e extensão – estão profundamente conectados às corporações do agronegócio.

De forma mais escancarada, as empresas patrocinam ou estão presentes em diferentes eventos anuais do campus, como a Feira de Carreiras e a Esalqshow, feira de inovação para o agronegócio que copia o modelo da Agrishow, maior do setor no país.

Bayer patrocinou a Esalqshow de 2019. Imagem: Reprodução/Instagram.

Entretanto, relações corporativas menos explícitas também marcam o cotidiano da instituição. O secretário da Associação de Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp) Gabriel Colombo não teve dificuldades para se lembrar de cenas que comprovam a influência das empresas no ensino da escola. 

Formado em agronomia pela instituição em 2013, Colombo é hoje doutorando na Esalq. Ele recorda de um episódio ocorrido na disciplina de Plantas Daninhas, “muito focada no uso de agrotóxicos”. O professor em questão aproveitou uma aula para mostrar fotos de uma visita que realizou em campos experimentais da Monsanto nos Estados Unidos, à convite da empresa. “Ficou 15 dias lá e, ao mesmo tempo, teve uma viagem de lazer. Tudo pago”, lembra.

A entrevista com Colombo foi realizada na sede da Adusp, localizada em uma casa em frente à entrada principal do campus. Ela foi interrompida algumas vezes por “bixos” da Esalq perguntando pela loja de produtos da instituição. “É na sala ao lado”, respondia. A sala em questão é a sede da associação de ex-alunos, que divide casa com a Adusp e coordena a venda dos produtos. 

Na porta de entrada da associação de ex-alunos há uma placa informando suas principais financiadoras, entre elas, a Bayer. Segundo o presidente da Adealq, Marcelo Santos, a maior parte desse financiamento vai para um programa de bolsas de permanência para “alunos carentes” da Esalq, gerido pela associação. Dentro da sede, exemplares da já extinta Revista da Adealq trazem propagandas da Monsanto na contracapa.

Placa na entrada da sede da Associação dos Ex-alunos da Esalq, a Adealq, mostra empresas do ramo de agrotóxicos, entre elas a Bayer e a Sumitomo Chemical, como patrocinadoras. Foto: Julia Dolce

Não é apenas a entrada física do campus que dá pistas das relações íntimas com corporações. No mundo virtual, o segundo link que internautas desavisados encontram no Google ao pesquisarem “Esalq” é o site MBA USP-Esalq.

O site destaca a presença de docentes da Esalq nos cursos. Mas os cursos são oferecidos por uma instituição privada, o Pecege ou Programa de Educação Continuada em Economia e Gestão de Empresas. Fundado por um professor da Esalq, o Pecege surgiu como um grupo de extensão dentro da Esalq. Hoje, vende cursos em convênio com a instituição. 

O prédio do Pecege lembra um shopping center. Está localizado dentro de um centro de inovação no bairro de alto padrão Reserva Jequitibá, vizinho ao campus. O centro abriga estruturas de várias empresas, como a gigante sucroalcooleira Raízen.

Não é a única conexão empresarial do antigo grupo de extensão. Em 2017, o Pecege firmou uma parceria com a Bayer, pela qual produtores rurais que comprassem os produtos da multinacional acumulavam pontos, podendo descontar em cursos oferecidos pela instituição.

Além dos cursos, o Pecege tem outras iniciativas, como consultorias e desenvolvimento de projetos para agroquímicas, tendo Bayer, UPL, Syngenta e Ihara como clientes. 

O Pecege oferece MBAs pagos em parceria com a Esalq; outros parceiros são Bayer e Syngenta. Foto: Julia Dolce.

Os MBAs da Esalq representam hoje uma fatia importante da fonte de renda privada da USP. Um levantamento da Revista Adusp mostra que, em 2023, a Esalq respondeu sozinha por 63% dos cursos online oferecidos pela universidade. Uma parcela expressiva deles é oferecida pelo Pecege.

“Isso atrapalha – e muito – o processo de entendimento de que a universidade é pública”, opina Colombo. Para o secretário da Adusp, esses cursos se aproveitam da própria dificuldade de acesso à universidade pública. “E usam esse nome. Para as empresas do agronegócio vai estar lá o selinho Esalq-USP e, por ser online, com alcance nacional.”

O Pecege não é o único exemplo de privatização da educação que leva a chancela da Esalq. O Solloagro (outro grupo de extensão, esse do Departamento de Solos) também se tornou um programa de cursos técnicos e de pós-graduação pagos na escola.

“Nós criamos para atender o público de pessoas formadas que pensam em se aperfeiçoar”, explica o coordenador do programa, o professor da Esalq Luís Reynaldo Alleoni. O Solloagro também recebe financiamento de empresas. Alleoni considera a relação como uma “via de mão dupla”. 

“A universidade contribui com a melhoria da capacitação para o pessoal que está na linha de frente e, ao mesmo tempo, eles contribuem com a universidade na medida em que trazem quais são os problemas atuais: demandas da linha de frente ou onde precisa de mais treinamento”, diz.  

O Solloagro é parceiro de uma plataforma de cursos online sobre o agronegócio, a Já Entendi Agro. A plataforma, por sua vez, foi a finalista da primeira temporada do reality show Safra de Inovações, produzido pela fabricante de maquinário agrícola John Deere. Além do curso “Agro para todos”, oferecido pela Solloagro, a plataforma reúne cursos oferecidos por grandes corporações como a Danone, a Cargill e a Bayer. 

A multinacional alemã é onipresente no campus da Esalq. Seu logo está costurado no uniforme do professor Maurício Roberto Cherubin, vice-diretor do CCarbon, o Centro de Pesquisa em Carbono na Agricultura Tropical, sediado na escola.

Maurício Cherubin, vice-diretor do CCarbon, contou que partiu da Fapesp o incentivo para que o centro buscasse financiamento privado. Foto: Julia Dolce

Segundo Cherubin, o CCarbon é hoje o maior programa de pesquisa em carbono do Brasil, reunindo mais de 70 pesquisadores de diferentes partes do país. O projeto tem como objetivo desenvolver soluções para mitigar as mudanças climáticas, com foco na descarbonização da agricultura. Criado em 2023 pela reitoria da USP, seus principais financiadores são a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e a Bayer. 

Cherubin conta que a busca por financiamento privado foi incentivada pela própria Fapesp. “Desde o primeiro momento eles falaram ‘considerem como seed money [financiamento inicial] e vão em busca de co-financiamento para acelerar essa pesquisa’. E, aí, a gente tem uma interação forte com a iniciativa privada.”

O professor garante que não há qualquer interferência da Bayer no andamento ou no resultado das pesquisas produzidas pelo CCarbon.

A bióloga Bruna Almeida é crítica ao financiamento privado da pesquisa de diferentes departamentos da Esalq pelas gigantes de agrotóxicos. “A atividade do CCarbon é importantíssima, não tô minimizando, a gente sabe da qualidade científica do que é produzido. Mas é aquele questionamento: vai mudar o quê de fato? De qual forma e beneficiando a quem?” 

Quando era estudante de biologia, Bruna estagiou no Departamento de Entomologia com doutorandos que investigavam como a mudança nas paisagens interferia na diversidade e abundância de polinizadores. “A saída de campo foi totalmente paga pela Syngenta, uns R$ 200 mil. Aí você já se questiona, porque os dados vão ser utilizados por eles…”, julga.

Uma das principais portas de entrada do financiamento privado da pesquisa produzida na Esalq são os chamados “grupos de extensão”, cujo nome pode confundir: eles não promovem a extensão rural. São, na verdade, espécies de laboratórios de pesquisa nichados em diferentes temas. Parte dos grupos promove estágios remunerados por bolsas financiadas por empresas.

“As empresas recrutam sistematicamente estudantes para o seu serviço de estágio e, aí, alguns acabam já engajados na sua vida profissional”, afirma o professor de agroecologia da Esalq, Carlos Armenio Khatounian, do Departamento de Produção Vegetal. 

Os relatórios de atividades de alguns desses grupos revelam essa parceria. O Grupo de Pesquisa e Extensão em Produção Vegetal e Plantas Daninhas, por exemplo, realizou em 2023 um simpósio em parceria com as multinacionais Syngenta, Adama, Sumitomo Chemical e Ihara.

Simpósio do Grupo de Extensão em Produção Vegetal e Plantas Daninhas leva a logo da Syngenta. Imagem: Reprodução

Um resultado importante dessas parcerias são pesquisas demandadas diretamente pelas empresas. Algumas delas têm contratos de confidencialidade, como explica Khatounian. 

“A pessoa é contratada por uma empresa x para testar o produto dela contra o produto dominante no mercado. E aí constata que o produto dominante no mercado dá um controle de 80% e o outro, de 70%. Isso é informado para a empresa. Isso não quer dizer que ela vai usar essa informação do jeito dado. Ela pode simplesmente comunicar que esse produto reduziu em 70% os danos. Quer dizer, a empresa pode selecionar os resultados da maneira que melhor lhe convém. Isso é coisa frequente”, exemplifica.

Algumas dessas cláusulas de confidencialidade têm prazos definidos, para que os professores possam publicar as pesquisas anos depois de realizá-las, de modo a não prejudicar nem as empresas nem seus currículos. Em casos de pesquisas que se tornam patentes, essa divulgação só será permitida no período de quebra de patente, que pode demorar décadas. “Tem pesquisas defendidas aqui dentro cujos números são limitados para a própria banca de defesa”, conta Gabriel Colombo. Algumas dessas pesquisas se tornam patentes.

O Joio levantou, via plataforma de convênios da USP, os dados de financiamento privado de pesquisas, cursos de extensão e pagamento de estudantes estagiários na Esalq. A instituição já fez convênios com as maiores empresas da cadeia agroalimentar, como a Nestlé, a Mondelez, a Cargill, a JBS, a Pepsi e a Ambev.

Também foram feitos 40 convênios com as maiores agroquímicas nacionais e internacionais, como Bayer, Syngenta, UPL do Brasil e Basf. A maioria dos convênios são estágios remunerados para estudantes, em sua maioria, coordenados pelo professor José Vicente Caixeta Filho, ex-diretor do campus (2011-2014) e coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão em Logística Agroindustrial. 

Já as parcerias com empresas de agrotóxicos para financiamento de pesquisa somam mais de R$ 1,1 milhão. Grande parte dos convênios com empresas, entretanto, não tem as empresas financiadoras especificadas porque são mediados pela Fundação de Estudos Agrários Luiz de Queiroz (Fealq). A plataforma mostra 614 convênios entre Fealq e Esalq, somando mais de R$ 1,6 bilhão.

Financiamento de pesquisas na Esalq

R$ 1.687.578.540 vêm dos convênios com a Fealq

R$ 1.124.898,65 vêm de parcerias com empresas de agrotóxicos

Para o secretário da Adusp, em muitos casos, a proximidade das empresas com a ciência produzida na Esalq deveria configurar conflito de interesses. Colombo destaca novamente o caso das férias de seu professor, pagas pela Monsanto. “Como que não vai ter conflito de interesses num caso desses?”, questiona. 

Um professor aposentado da Esalq que pediu anonimato explicou que os financiamentos de pesquisa são aprovados em reuniões dos conselhos dos respectivos departamentos. “Eu era de um conselho, passavam milhares de reais a cada mês aprovados em projeto de pesquisa”, lembra. 

Segundo ele, apenas uma minoria de membros desses conselhos discordam do financiamento privado em determinadas pesquisas, apontando conflito de interesses. “A gente sempre perdeu em qualquer votação. Pensávamos: ‘não, isso aí não é possível, tem alguma coisa errada’. Mas simplesmente não dava, era silenciado e passado para a frente”, complementa.

O campeão em financiamento privado da Esalq é o Departamento de Economia, Administração e Sociologia, segundo o professor Antônio Almeida. “Estimo que no ano passado foram mais de R$ 100 milhões.” Ele não se recorda, entretanto, de algum convênio que tenha sido barrado por conflito de interesses. 

A crítica ao financiamento privado é exceção entre os docentes da Esalq. O vice-diretor do CCarbon defende a modalidade como uma forma de “potencializar a pesquisa”. “A gente percebe quantos colegas têm dificuldade de captação de recursos, de manutenção de estudantes, os grupos definhando. Mas muito porque algumas instituições não adotam essa postura de se relacionar com o setor privado. Acho que a USP entendeu isso”, avalia.

No rastro da aprovação do Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, que completa dez anos em 2025, a busca por financiamento privado vem sendo cada vez mais incentivada pelas universidades públicas. A USP se destaca nesse movimento.

Berço ruralista e papel na revolução verde

Os limites entre público e privado na Esalq são borrados desde o berço. Ela foi criada para atender aos interesses de uma classe ruralista antenada nas evoluções na produção agrícola. 

Luiz de Queiroz, que nomeia o campus, foi um agrônomo neto de um dos maiores latifundiários do estado de São Paulo, o brigadeiro Luiz Antônio de Souza, e filho do Barão de Limeira. Em 1872, o agrônomo herdou a Fazenda Engenho da Água, na então cidade de Constituição, hoje Piracicaba.

Entusiasta das novas tecnologias agrícolas que surgiam na Europa e nos Estados Unidos, Luiz de Queiroz arrematou, em 1889, uma nova propriedade de 319 hectares, para a qual projetou a criação de uma escola agrícola privada. Na época, o agrônomo recorreu ao governo paulista para financiar a construção da escola. O projeto não vingou. 

Em 1892, após o legislativo de São Paulo autorizar o poder executivo a fundar uma Escola Superior de Agricultura no estado, o agrônomo resolveu doar a fazenda e suas benfeitorias ao poder público. A Escola Agrícola Prática Luiz de Queiroz foi fundada em 1901, homenageando seu idealizador. A instituição fez parte da Secretaria de Agricultura de São Paulo até 1934, quando foi integrada à USP, e passou a ter o nome atual.

“A gênese da Esalq está nessa elite mais ligada ao mundo científico, às modernidades, ao capitalismo, que tinham o objetivo de utilizar o conhecimento visando aumentar a produção agrícola e, consequentemente, suas divisas”, afirma o historiador Rodrigo Molina, professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que pesquisou a história da Esalq em seu mestrado e doutorado. 

Molina avalia que a instituição sempre foi ligada aos valores capitalistas que, no mundo rural brasileiro, estavam conectados ao latifúndio, ao trabalho escravo convertido em um trabalho assalariado muitas vezes análogo à escravidão, além de uma agricultura voltada à exportação de commodities. “Ela surge como uma instituição do Estado para atender aos interesses de quem comanda o Estado que, pensando no início do século 20, como ainda hoje, eram basicamente os grandes proprietários rurais.”

Turma do curso de engenharia agronômica da Esalq na década de 1910. Foto: Reprodução/ Rodrigo Sarruge Molina.

A tese de Molina tem como foco o papel da Esalq no desenvolvimento da modernização conservadora do campo brasileiro durante a ditadura militar. O fenômeno fez parte do contexto internacional da “revolução verde”, como é conhecido o pacote de inovações agroindustriais e interesses econômicos exportados do Norte, principalmente dos Estados Unidos, para países do Sul global. 

A Esalq tem uma forte ligação com os EUA desde a sua fundação, seja porque municípios da região de Piracicaba recebeu imigrantes daquele país, seja porque professores estadunidenses foram convidados a lecionar na escola desde a sua fundação, ou mesmo por uma aproximação entre a instituição e o governo americano a partir da Segunda Guerra Mundial.

Na Guerra Fria — particularmente durante o regime militar brasileiro — essa ligação se tornou umbilical. Durante o período, a Fundação Rockefeller, de uma família de industriais e banqueiros estadunidenses, injetou largas remessas em universidades brasileiras, e o Departamento de Genética da Esalq foi um dos grandes premiados. A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) também foi uma importante financiadora da Esalq no período, chegando a instalar uma sede dentro do campus

Parte das motivações desse movimento estava relacionada ao medo, por parte dos EUA, de que países com muita pobreza fossem mais propensos a realizar revoluções socialistas, como explica Molina. “Se começa a injetar grana para industrializar a agricultura, para que ela produzisse mais. Os técnicos norte-americanos acreditavam que a população ia deixar de ser miserável e a desigualdade social, diminuir. Só que aconteceu o contrário: quanto mais ‘moderna’ a agricultura, mais cresceu a desigualdade social, porque a característica da agricultura brasileira é agroexportadora.”

Nesse contexto, a ciência produzida na Esalq foi importante para espalhar Brasil afora o pacote ideológico e tecnológico da revolução verde, que incluiu um boom do consumo de agrotóxicos no país. A ditadura no Brasil, em conexão com esse padrão de agricultura dos Estados Unidos, conseguiu atingir muitos dos objetivos que eles queriam alcançar, entre eles, desmobilizar e exterminar as Ligas Camponesas, movimento dos trabalhadores que lutava pela reforma agrária”, destaca o professor. 

Em sua tese, Molina levantou documentos que mostram o financiamento de pesquisa na Esalq durante a ditadura. Ele destaca que embora a maioria do financiamento à época fosse público, muitas empresas já faziam convênios com a instituição. Caso da Monsanto, da FMC e da Ihara (na época, Iharabras), que financiaram bolsas de estudo e pesquisas durante a ditadura. 

Caminhonetes de um lado, “muitos Silvas” do outro

Caminhonetes formam a paisagem do campus da Esalq em Piracicaba. Foto: Julia Dolce

A paisagem do campus da Esalq é formada por prédios centenários, ruas arborizadas e caminhonetes na faixa de meio milhão de reais. S10s, RAMS, Hiluxs e Ford Rangers ocupam as vagas públicas da instituição. Segundo Douglas, os carros são, em sua maioria, de alunos. “Muitos acabaram de fazer 18 anos.” 

À imagem de seu fundador, a escola tem um corpo discente formado historicamente por herdeiros de grandes proprietários de terras. A pauta de uma das primeiras revoltas estudantis na instituição, ainda em 1904, exemplifica esse perfil: a recusa em realizar trabalhos braçais no campo. Articulados com seus pais, parentes e amigos influentes no Partido Republicano Paulista, os estudantes da época conquistaram a redução das aulas práticas na instituição. Vale lembrar que as famílias em questão, até pouco mais de uma década antes, eram proprietárias de escravizados.

Ao longo do século, a elite ruralista de diferentes partes do país seguiu ocupando a Esalq. Douglas se lembra quando, em 2018, o pai de um estudante de agronomia enviou seu jato particular ao aeroporto da instituição. “Para buscar os meninos da república e levar para a fazenda dele, no Centro-Oeste, passar uns dias de férias.”

A Esalq tem uma longa tradição intergeracional. Estudantes e  professores, cujos pais –ou mesmo avós – também são esalquianos. Segundo a estudante de agronomia Camila*, que também teve a identidade preservada pela reportagem, essas relações familiares costumam ser destacadas em sala de aula. “Várias vezes, na chamada. ‘Ai, fulana de tal, você é filha de tal pessoa? Fulano, você é neto de não sei quem? Poxa, eu amo tanto o teu avô! Ele é, inclusive, a referência da disciplina…’”

Camila é negra, cresceu em um bairro periférico e destaca que esse ambiente mexeu com sua autoestima. “Você pensa: como é que eu vou me destacar num lugar como esse?”, lembra.  A jovem chegou a trancar uma disciplina de Hidrologia e Drenagem depois que o professor questionou, ao ler os nomes dos alunos na chamada, os “muitos Silvas” na lista. “Quantos sobrenomes simples, que estranho…”, teria dito o docente.

Outro lugar comum que revela o elitismo histórico dos professores, segundo a estudante, é assumir que os alunos têm propriedades rurais. “Nas  aulas eles perguntam: ‘E na propriedade de vocês? Como é lá?’”. 

O perfil dos estudantes da Esalq, no entando, vem lentamente se transformando, principalmente após a aprovação das cotas sociais e raciais pela USP. Em 2002, o primeiro levantamento de perfil de ingressantes disponibilizado pela instituição bateu o seguinte retrato: 75% deles vinham de escolas particulares. Mais de duas décadas depois, o último levantamento – de 2024 – revela mudanças: 43% estudaram em colégios privados. 

Senzala, Alforria e eugenia

Um dos motivos que levaram Camila a escolher o curso de engenharia agronômica no vestibular foi tentar compreender a fome que ela mesmo vivenciou. “Eu fui fazer vestibular com o sonho de resolver a fome no planeta”, lembra.

Desde o seu primeiro dia de aula na Esalq, esse sonho foi sendo minado. Camila estava almoçando no restaurante universitário quando percebeu que três veteranos vinham andando em sua direção, a olhando fixamente. Ao se aproximarem, um deles derrubou em cima dela uma bandeja cheia de comida. “Eu acho que os mais velhos deram ordem para o mais novo derrubar a bandeja em mim. O cara começou a rir, pediu desculpa.” Naquele ano, a estudante era uma entre os três ingressantes pretos no curso de engenharia agronômica. 

O perfil racial dos ingressantes da Esalq só passou a ser levantado em 2010, quando 84% eram brancos. No curso de engenharia agronômica, naquele ano, 87% dos ingressantes eram brancos, 7% amarelos, 4% pardos e 1% negros. Já em 2024, brancos representavam 73% dos ingressantes na Esalq. No curso de engenharia agronômica, a porcentagem era maior: 77%; contra 3% de negros. A título de comparação, em 2023, o perfil racial de ingressantes em toda a USP era formado por: 65% brancos, 18% pardos e 5% pretos. 

Ao longo de sua graduação, Camila foi compreendendo como racismo uma série de situações que vivia no campus. Entre elas, há inclusive um episódio de apologia à eugenia, feita por um professor em 2022. 

“Ele estava ensinando a reprodução de árvores. Olhando para mim, ele falou: ‘vamos supor que uma espécie só se reproduz com a mesma espécie. Então essa menina branquinha aqui’, e segurou no ombro de uma menina da turma, ‘só cruza e gera descendentes com esse cara croata’, que também era caucasiano. Percebi que as pessoas ficaram muito escandalizadas de se ligar o que tinha rolado naquele momento, porque eu era a única pessoa negra na sala”, relembra. “A Esalq tem esse tipo de coisa.”

A estudante saiu da aula chorando. Ela decidiu não denunciar o professor para não prejudicar sua graduação. “O que eu fiz nesta e na maioria das situações racistas que passei aqui foi engolir, guardar essa raiva e trabalhar ela com inteligência, em outros momentos”, afirma. “Eu vi todo tipo de coisa na minha vida, eu vi tudo. Mas a violência esalqueana foi uma coisa que me impactou de verdade, porque é algo que mexe com a sua sanidade.”

Para a estudante, a gestão da Esalq não sabe nem por onde começar para resolver problemas raciais, culturais e sociais no campus. “São coisas históricas construídas junto à Esalq”, avalia. 

Alguns exemplos de tradições esalqueanas racistas são repúblicas com nomes como “Senzala” e “Alforria” – a primeira, fundada em 1991, mudou seu nome e logo, com ilustrações racistas, para SZ. Entretanto, segundo entrevistados pelo Joio, seus moradores seguem se referindo a ela como Senzala. 

Logo da República Senzala antes de ser reformulado. Foto: Reprodução/Google MapsAtual casa da República SZ, antiga República Senzala. Foto: Julia Dolce

Outra referência direta à escravidão vem de uma passeata realizada há mais de 80 anos pelas repúblicas da Esalq. No desfile, estudantes brancos pintam os rostos de tinta preta — prática racista conhecida como “blackface“. Outros, simulam chicotadas. A data do evento? Treze de maio, dia da abolição da escravatura no país.

O historiador Rodrigo Molina acredita que as tradições trotistas da Esalq estão diretamente conectadas às imensas desigualdades no campo brasileiro. “A raiz do trote na Esalq está nas fazendas, na escravidão. Além da libertação no 13 de maio, a própria forma como obrigam os calouros a se vestir é uma maneira de ridicularizar o trabalhador rural. O nome de quem quer pleitear vaga nas repúblicas, “agregado”, é também uma palavra usada historicamente para se referir a quem é bem-vindo nas fazendas”, exemplifica.

Trote e conservadorismo: “tradição esalqueana” 

Para além de um perfil social elitista e branco, outra constância ao longo das décadas na Esalq é o conservadorismo político. Em 1964, o Centro Acadêmico Luiz de Queiroz (Calq) apoiou o golpe militar. Alguns meses antes do golpe, no início do ano letivo, o estudante ingressante no curso de agronomia Paulo Marcomini foi entregue à polícia pela diretoria do campus, após veteranos trotistas e integrantes do Calq vasculharem seus pertences e descobrirem sua ligação com o Partido Comunista do Brasil (PcdoB). 

Nos anos seguintes, entretanto, algumas gestões do Calq se opuseram ao regime militar. Na época, os conservadores passaram a se identificar como “azuis” e se contrapor a estudantes “vermelhos” e “verdes” – respectivamente, alinhados à esquerda e ao ambientalismo. A divisão se estendeu para as repúblicas e passou também a integrar uma terceira categoria, mais neutra, os “mocós”. 

Hegemônicos no campus, os azuis se tornaram responsáveis pela construção e manutenção da chamada “tradição esalqueana”, um caldo cultural reacionário sustentado, principalmente, pelo trote.

Para o professor Antônio Almeida, o objetivo do trote, enquanto instituição, é nada menos do que o sequestro do campus da Esalq. “Às vezes são tão organizados que é o suficiente para conseguirem a própria diretoria, cargos de docentes, posições em comissões, ou intimidar quem não concorda com tudo isso.”, afirma. 

As tradições trotistas na Esalq envolvem algumas particularidades. Entre elas, está o uso de chapéu de palha pelos ingressantes, a adoção obrigatória de apelidos que seguem identificando esalqueanos por toda a vida, inclusive profissionalmente, e uma hierarquia que demanda que “bixos” se ajoelhem ou deitem no chão para se ‘apresentarem’ para veteranos, chamados de “doutores”, enquanto os elogiam e se xingam.

Bixos da Esalq deitados durante prática de trote no campus. Foto: Julia Dolce

Um elevado tom de sadismo é outra marca do trote esalqueano. Há dez anos, durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa de São Paulo que apurou violações de direitos humanos em trotes universitários, uma estudante deu um depoimento anônimo contando que os bixos eram levados para o meio de um canavial, em outra alusão à violência escravocrata. “Fazem a gente tirar a roupa, dão chibatadas, esfregam a gente no chão”, afirmou à época. 

Já o estudante da Esalq Felipe José Yarid denunciou que veteranos jogaram agrotóxicos em seu corpo durante seu trote, em 2007, o que causou lesões na pele e problemas neurológicos. “O exame toxicológico apontou veneno no meu corpo. Eu não tinha movimento nenhum, não conseguia me mexer. Fui prejudicado, não consegui fazer provas, não conseguia ir às aulas. Além disso, eu ainda fui suspenso por uma semana depois que eu tentei denunciar o caso para a diretoria da universidade”, afirmou Yarid à CPI. 

À época, em páginas da Esalq no Facebook, alunos questionavam as denúncias e a sanidade de Yarid, inferindo que ele havia inventado a situação e estava sujando o nome da instituição. Yarid se suicidou em 2018. 

A CPI do Trote teve como resultado uma lei sancionada em 2015 que proíbe a atividade na rede pública em qualquer nível de ensino no estado de São Paulo. Embora placas espalhadas pelo campus da Esalq reiterem a proibição, uma década após a aprovação da lei, o trote – agora chamado de “ralo” – segue ocorrendo. Inclusive em frente a uma dessas placas, posicionada diante do prédio central do campus, onde fica a diretoria da Esalq. 

Bixos e veteranos se encontram em frente ao Prédio Central
da Esalq para preparar saída para ração. Foto: Julia Dolce

Placa na Esalq reitera proibição do trote.
Foto: Julia Dolce

No local, a reportagem acompanhou a aglomeração de bixos e veteranos para a saída para a “ração”, a alimentação gratuita dos bixos nas repúblicas. Eles participam de um período de “estágio” no qual vivem, sem custos, em diferentes repúblicas ao longo de três meses, até serem selecionados para aquela onde vão morar no período da graduação.

Marya Fernanda Santos da Silva afirma que atualmente a divisão ideológica das repúblicas pelas cores está mais diluída. “Antigamente era uma coisa muito marcada, hoje em dia está bem mesclado.” A presidente do Conselho de Repúblicas da Esalq destaca que hoje o “ralo” é bem mais leve do que já foi. “Hoje em dia já não é tudo isso. É mais isso de usar chapéu, pegar assinaturas.” 

Não é a experiência vivida por Douglas. O agrônomo desenvolveu um quadro de depressão durante seu período na Arado, na segunda metade da década passada, que ele avalia ser diretamente relacionado ao trote. “Comecei a ficar muito mal até tomar a decisão de sair. Alguns meses depois, fui diagnosticado com depressão. O ambiente [das repúblicas] foi o causador principal, de acordo com a minha terapia”, conta. Nesse contexto, sua vida acadêmica passou a afundar.

A principal queixa de Douglas sobre a vida na república diz respeito à obrigação de reportar tudo que fazia aos “doutores”. “E se eu fizesse alguma coisa errada, aí era motivo de eu ser castigado.” O castigo em questão era mais trote – que, na República Arado, envolvia a intensificação de uma rotina diária de exercícios forçados até a exaustão. 

“Fazer flexão, fazer agachamento, abdominal, prancha, ficar segurando peso, muitos exercícios diferentes. E tudo de um jeito inusitado: pelado. Isso é bem comum entre as repúblicas azuladas, a pessoa tem que ficar pelada”, conta. 

O agrônomo destaca que seu trote foi “leve” em comparação às tradições de outras repúblicas. “Tem uma república onde a tradição é uma pessoa do segundo ano vomitar na comida, misturar tudo e fazer as pessoas do primeiro ano comerem.” 

Douglas explica que a recusa em participar dessas tradições não é tão simples quanto pode parecer. “É bem difícil falar não. Quanto mais novo você é, mais eles vão insistir e dar um jeito de você fazer o que eles querem. Se você não fizer, é tachado para sair dessa bolha, desse círculo deles.” 

Foi o que aconteceu com o agrônomo. A decisão de deixar a Arado para focar na vida acadêmica e cuidar da saúde mental foi mal recebida pelos outros moradores. “Me trataram bem mal. Uma coisa que percebi é que se a pessoa sai da república, ela é esquecida por todo mundo, pode tentar pedir ajuda, indicação, qualquer coisa, mas vai ficar pra trás, porque ‘abandonou o barco’”, avalia. 

Se o período vivido na Arado atrasou a graduação de Douglas, o afastamento da república, ainda que tenha impactado positivamente em suas notas, prejudicou seu futuro profissional. A promessa de renda de R$ 50 mil está longe de se concretizar. O agrônomo se formou em 2024, mas não tem perspectiva de emprego na área. Atualmente, ele trabalha como cozinheiro em um bar em Piracicaba.

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Boicotes e falta de investimento para a agroecologia

Apesar da hegemonia do modelo de produção “venenista”, a Esalq foi casa de importantes professores e pesquisadores da agricultura orgânica e da agroecologia. O próprio termo “agrotóxico” – presente na legislação brasileira e bastante rejeitado pelo agronegócio — foi cunhado por um esalqueano, Adilson Paschoal. Falecido em 2023, o professor dedicou sua carreira à pesquisa dos impactos ambientais do uso dos venenos. Viajou o mundo contrapondo a indústria química e, por isso, sofreu tentativas de descredibilização e suborno. Não foi o único. 

O professor Antonio Almeida avalia que os valores impostos pelo grupo hegemônico da Esalq exigem a supressão da possibilidade de se pensar em tecnologias alternativas de agricultura. “Você tem que ser contra o ambientalismo, a agroecologia e outras ideias sobre como fazer agricultura”, explica.

Em sua trajetória de distanciamento da Arado, Douglas se aproximou da agroecologia, deixando o laboratório onde trabalhava para a Bayer e passando a participar do Laboratório de Educação e Política Ambiental da Esalq, o OCA. “Aí a situação era totalmente oposta. Era ter que ficar brigando com o chefe do departamento que tava querendo tirar o laboratório dali.” O OCA é parte do Departamento de Ciências Florestais da Esalq e, segundo Douglas, vem passando por cortes de bolsas e tentativas de realocação para uma área isolada do campus

A pesquisa em práticas agrícolas alternativas, como a agroecologia, é historicamente subfinanciada na Esalq. O professor de agroecologia Carlos Armenio Khatounian afirma que o financiamento já foi “exclusivo” para quem defende agrotóxicos, principalmente por parte das empresas do setor. 

Hoje, ele avalia que as coisas estão mudando. “Acho que a época em que essas empresas davam as cartas totalmente mudou. Mas existiu e continua sendo uma coisa bem importante. Às vezes a gente não quer olhar para isso, mas quem põe o dinheiro, manda”, constata. Segundo Khatounian, existe um crescente financiamento para quem pesquisa técnicas alternativas de controle de pragas, como a área do manejo biológico, mas não para quem quer pensar a agroecologia de forma integral.

Parte das pesquisas no nicho de bioinsumos tem sido financiada pela própria indústria de agrotóxicos, conforme verificado no levantamento de convênios de empresas com a Esalq. Há também um crescente interesse da Esalq nas questões climáticas, como prova o CCarbon. Segundo Khatounian, o negacionismo climático não é comum na instituição. “A questão ambiental para a moçada é um ponto dado, não existe a discussão se isso é importante ou não. É importante. O que existe é a pergunta de como viabilizar’, avalia o professor. 

É aí que a lógica do modelo de produção do agronegócio se mantém. A monocultura de commodities, por exemplo, é o foco da pesquisa produzida no principal curso de agronomia do país. A bióloga Bruna Almeida conta que um amigo esalqueano, filho do maior produtor de cenouras de Minas Gerais, não encontrou espaço no currículo para estudar a cultura. “Como a gente não desenvolve tecnologia para produtos rurais, frutíferas, hortaliças, a grande agrodiversidade que tem no Brasil?” questiona. “É tudo, basicamente, soja e cana.”

Gabriel Silva Souza, formado em engenharia agronômica e licenciatura em ciências agrárias pela Esalq, pesquisou o currículo do curso de engenharia agronômica em seu TCC. Ele avalia que a agroecologia tem pouco espaço. “Tem muitas visões sobre manejo integrado, mas falta a parte de conscientização social. A gente não discute os casos do mundo real. Não tem estudo de caso de que o agrotóxico foi usado assim em tal lugar e deu errado. É uma coisa focada em ‘se fizer direitinho, dá tudo certo’, mas não tem o olhar crítico do que já deu errado.”

Seu xará Gabriel Colombo, da Adusp, complementa: “Não tem nenhuma disciplina que trate do impacto de agrotóxicos para a saúde humana, das condições de trabalho de quem está aplicando. Isso aqui nem passa no debate”.

Os principais resultados da pesquisa de Souza são de que o currículo da Esalq é muito fragmentado e – herança da revolta estudantil de 1904 – muito teórico. A parte prática é concentrada nos grupos de extensão, aqueles mesmos que são diretamente financiados por empresas. Se o aluno escolher participar de um grupo de extensão em cultivo de soja, só vai ter contato com essa cultura. “A gente estuda uma agricultura desconectada do consumo, que serve um mercado que não está ouvindo as demandas da população de fato. Não tem discussão sobre soberania alimentar no Brasil”, avalia Souza.

Para além da dificuldade de financiamento e dos problemas no currículo, a tradição esalqueana tem um histórico de repressão de iniciativas que questionam o agronegócio. Um exemplo emblemático ocorreu em 2017, durante a terceira edição da Jornada Universitária pela Reforma Agrária, evento anual organizado no campus por um grupo de professores e alunos.

Na ocasião, foi realizada uma oficina de lona organizada em parceria com Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), no qual militantes ensinavam como montavam as barracas dos acampamentos. A atividade ocorreu no gramado central da Esalq. Após a Adealq denunciar que o MST estava “invadindo” a Esalq, a diretoria do campus abriu uma sindicância contra o professor Marcos Sorrentino, do Departamento de Ciências Florestais, que compunha a organização da jornada. 

“Ali o agronegócio tirou as asinhas para fora. Veja como a coisa é orgânica, no sentido de manutenção do espaço político, conseguem chegar nesse detalhe de influenciar a direção da escola. Só me informaram que a sindicância foi fechada quando eu me aposentei. Não me informaram para me coagir a não fazer novas jornadas – e, de certa forma, eles conseguiram”, conta o professor que continuou organizando o evento, mas tomou o cuidado para que ele não ocorresse mais no gramado central 

Dois anos antes, outra iniciativa já havia sido barrada no campus: a popular “Segunda sem carne”, campanha internacional de redução do consumo de carne vermelha, que já se tornou política pública em diferentes municípios brasileiros.

A iniciativa, proposta pela Faculdade de Nutrição da USP para os restaurantes universitários, foi amplamente rechaçada pela comunidade esalqueana. Segundo Sorrentino, a Associação Brasileira de Produtores de Carne chegou a enviar uma carta para a Esalq se contrapondo à iniciativa. “A narrativa deles é que a Esalq não podia dar um mau exemplo”, recorda. 

Um ex-aluno associado da Adealq, então diretor da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne, publicou um artigo de opinião no blog da associação de ex-alunos. “Pecuária causa aquecimento global. Pecuária polui mais que transportes. Pecuária desmata. (…) É mesmo? Estava no folheto de alguma ONG?”, questionou.

A reação não veio apenas de ex-alunos. “Os estudantes elitistas que nem comiam no restaurante universitário porque moram em repúblicas onde há empregadas que cozinham, ficaram indignados”, lembra Bruna Almeida. 

Em resposta à polêmica, o professor Marcos Sorrentino promoveu uma palestra com nutricionistas e profissionais da área ambiental. “Na unidade da USP que se diz responsável por alimentar o mundo e sustentar o país, isso foi recebido com hostilidade e preconceito. Eu fui no evento e foi horrível de acompanhar, o pessoal da zootecnia gritando com os profissionais convidados. É uma disputa clara, e cansa”, confessa Bruna. 

E é justamente o cansaço o denominador comum entre os esalqueanos “vermelhos” e “verdes” ouvidos pela reportagem. Isso quando esse denominador não envolve consequências psicológicas ainda mais severas, como o caso de Douglas revela. 

Na reta final de sua graduação, a estudante Camila revela outro sentimento: “Eu tenho trauma”. Provavelmente uma das poucas esalqueanas que já viveram na pele a fome que o agronegócio diz alimentar, a estudante quer hoje distância do campus. 

O Joio enviou uma lista de perguntas à reitoria da USP e à diretoria da Esalq questionando-as sobre medidas para garantir que não haja conflito de interesses resultante do convênio com empresas. A reportagem também pediu um posicionamento sobre as denúncias de racismo, as práticas trotistas e os relatos de boicote às atividades críticas ao modelo de produção do agronegócio. Não houve resposta até a publicação.

*O agrônomo teve sua identidade preservada por temer represálias. 

**A estudante teve sua identidade preservada por temer represálias. 

Artigo Privatização, privilégio, racismo e perseguições: conheça a Esalq, que forma quem defende o agro publicado em O Joio e O Trigo.

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