Termo cada vez mais frequente nas discussões sobre mudanças climáticas e o futuro dos sistemas alimentares, a pecuária regenerativa abrange práticas que revitalizam o solo e restauram a biodiversidade de áreas degradadas
“Olha mais uma ali. Minhoca é vida!”, orgulha-se Daniela Calza, em uma cena que se repete três ou quatro vezes durante a visita da nossa reportagem à Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória, a Copavi, no assentamento Santa Maria, em Paranacity (PR), em um dia quente e seco de novembro.
Especialista em produção agroecológica e orgânica, Daniela mostra minhocas e rola bostas — um besouro miúdo de nome autoexplicativo — em meio a um sulco de oito centímetros na terra fofa. “Fico muito tempo fora sem vê-las. Quando venho, fico encantada”, explica, enquanto contempla uma área repleta de árvores e arbustos que em nada se assemelha a um pasto convencional.
As minhocas e os besouros criam túneis por onde transportam e distribuem nutrientes, deixando a terra aerada e fofa. É um importante indicador da qualidade biológica e da fertilidade do solo. A presença desses organismos é rara em pastagens.
No trecho em que o sulco fora aberto, havia ao menos três tipos de capim: matogrosso, estrela-africana e colonião, além de pequenas mudas e árvores adultas de leucena, espécie que tornou-se um dos pilares no manejo do rebanho de 82 animais entre bezerros, novilhas e vacas.
A Copavi produz leite e cana-de-açúcar orgânicos e seus derivados, além de hortaliças e tubérculos, em uma área total de 246 hectares. Esses alimentos são fornecidos na merenda de escolas da região por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Pnae, e comercializados de forma direta.
Daniela nasceu e cresceu no assentamento, especializou-se em agroecologia e no manejo das vacas. É associada e presta assistência técnica para a Copavi e outros assentamentos da região na produção agroecológica e orgânica de leite e outros alimentos.
Os animais ocupam cerca de 40 hectares, uma produção pequena. Outros seis hectares são dedicados ao cultivo de capiaçu, um capim que pode chegar a até três metros de altura e é armazenado para alimentar o gado nos períodos em que a chuva torna-se escassa e a disponibilidade de gramíneas diminui.
Pode parecer contraditório, já que há uma relação direta entre pecuária, desmatamento e grilagem de terras no Brasil, mas foi o manejo adequado do gado que ajudou a tornar a área do assentamento uma mancha fértil em meio à região de solo pobre e arenoso, quase na divisa com São Paulo e Mato Grosso do Sul. Uma área até hoje cercada pela pecuária convencional e por monocultivos de cana, soja, milho e mais recentemente mandioca.
O modelo de manejo de animais adotado pela Copavi é exemplo de uma expressão que vem se tornando cada vez mais frequente nas discussões sobre mudanças climáticas e o futuro dos sistemas alimentares: a pecuária regenerativa.
Não existe uma definição precisa para o termo. Ele abrange um conjunto de práticas interrelacionadas na criação de animais, sobretudo bovinos, com o objetivo regenerar o solo e a biodiversidade de áreas degradadas. Na pecuária regenerativa, o solo é o protagonista.
O que é pecuária regenerativa?
Pecuária regenerativa é um termo que abrange um conjunto de técnicas de manejo de animais com base na interação harmônica entre quatro elementos: solo, plantas, animais e pessoas. Não há uma definição fechada, trata-se de um conceito fluido que objetiva regenerar as funções ecológicas naturais de um ambiente degradado, a partir de uma perspectiva agroecológica de produção. Na pecuária regenerativa, o solo é o grande protagonista. O objetivo é conhecer e restaurar suas características físicas, químicas e biológicas naturais, devolvendo sua fertilidade original. Isso é feito de várias formas, a começar pela promoção de diversidade de plantas, desde gramíneas variadas, até espécies arbustivas e arbóreas que vão ajudar a ciclar nutrientes e manter a umidade naquela pastagem. Isso evita processos erosivos e a degradação do pasto. O manejo adequado da terra e das espécies vegetais permite que o solo tenha vida própria, além de fornecer alimento, sombra e conforto térmico para o gado. A divisão do pasto em piquetes gera uma distribuição mais inteligente dos animais, proporcionando adubação mais eficiente em todo o terreno, além de permitir a permanência de uma cobertura vegetal suficiente até a próxima “refeição”. Com isso, há uma redução drástica da dependência de insumos químicos e/ou externos. Esse modelo produtivo busca promover o bem-estar e retomar o comportamento original desses animais, como oramoneio, que é o ato de comer diretamente dos galhos, e o coçar no caule das árvores, útil no controle de parasitas. Inclui também o aspecto social ao promover condições mais justas de trabalho e remuneração daqueles que lidam com o manejo e a produção de modo geral.
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Vinho antigo em garrafa nova
Quando as primeiras famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra chegaram ao assentamento Santa Maria, ainda na década de 1990, encontraram um solo exaurido pelo monocultivo de cana-de-açúcar. As terras da antiga Fazenda Santa Maria haviam sido arrendadas a uma usina pelos antigos proprietários, em meio a uma disputa judicial que sucedeu a desapropriação da área, até então improdutiva, pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A posse definitiva em favor da reforma agrária viria apenas em 1993. Naquele ano, 25 famílias vindas de outras regiões do Estado ocuparam as terras. Tentaram, no início, cultivar milho, feijão e outros alimentos facilmente cultivados em regiões de terra fértil.
Logo entenderam que regenerar aquele solo arenoso e pobre em nutrientes seria fundamental. E que poderiam aproveitar a vocação para a cana-de-açúcar e o gado, mas partindo de um modelo completamente diferente ao que se via ao redor. Sem queimadas, consorciado a outros cultivos e com uma produção orgânica. No caso da pecuária de leite, esse processo levaria dez anos.
Em 2003, com a adoção do pastoreio racional Voisin, o PRV, a paisagem começaria a mudar. O conceito foi criado pelo biólogo francês André Voisin no final da década de 1940 e difundido no Brasil pelo professor do departamento de zootecnia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Pinheiro Machado.
A técnica baseia-se na divisão do pasto em espaços menores, chamados de piquetes, onde os animais são mantidos pelo período suficiente para consumirem a pastagem sem prejudicar o seu rebrote.
Embora naquela época a principal preocupação de Voisin com a rotação das pastagens fosse garantir a disponibilidade de alimento, ela forma hoje uma das bases do que passou a ser chamado de pecuária regenerativa.
De acordo com o professor titular do Departamento de Plantas Forrageiras e Agrometeorologia da UFRGS, Paulo Cesar de Faccio Carvalho, o conceito é um novo nome para técnicas antigas, ou “vinho antigo em garrafa nova”, como ele mesmo define. “Só de tipos de rotação de pastagem existem mais de uma dezena com nomes diferentes: ultradenso, santa maria, holístico…”, enumera.
Isoladamente aplicados, contudo, esses conceitos não garantem, por si só, a capacidade regenerativa. Segundo o professor, a pecuária regenerativa é aquela que permite recuperar a saúde do solo em seu aspecto químico, físico e biológico. Assim, é possível promover e preservar a presença de microrganismos que atuam na decomposição de matéria orgânica, ciclagem de nutrientes e na estruturação do solo, mantendo-o fértil e protegido de processos erosivos e de compactação.
“Quando você propõe, nos diferentes piquetes do seu planejamento forrageiro, diferentes espécies de gramíneas com diferentes funcionalidades, incluindo leguminosas e arbustos, você caminha para uma pecuária regenerativa”, explica Carvalho.
Garçons de vaca
Os piquetes funcionam como um tabuleiro manejado conforme a estação do ano e a disponibilidade de alimento, e levando-se em consideração também as necessidades nutricionais dos animais em cada fase da vida. Um arranjo produtivo complexo que demanda observação, experimentação e ajustes constantes.
“O Pinheiro Machado falava que a gente era garçom de vaca”, brinca Daniela, ao lembrar dos ensinamentos do professor, no início do processo de conversão. Ela trabalhou no manejo convencional e recorda da monótona dieta à base de sorgo, um grão rico em amido muito utilizado na alimentação dos bovinos. Hoje, os animais têm à disposição um cardápio variado, composto por diferentes tipos de capins, a leucena e o margaridão, espécies arbóreas adotadas com sucesso na alimentação dos animais na Copavi.
A leucena é uma espécie arbórea exótica com potencial invasor em áreas de vegetação nativa. Tornou-se uma dor de cabeça em várias cidades do Brasil, mas na Copavi vem se mostrando uma grande aliada na alimentação graças ao seu alto índice de proteína e fácil adaptação e propagação.
Além de servirem de alimento e melhorarem a saúde do solo, as árvores e arbustos oferecem sombreamento e conforto térmico para os animais em uma região de calor intenso. As vacas também conseguem manifestar seu comportamento natural e usam o tronco para se coçar, o que ajuda os animais a se livrar naturalmente de parasitas.
Em sua pesquisa de mestrado, desenvolvida na Universidade Estadual de Maringá (UEM), Daniela estudou os impactos do sombreamento na pastagem. Uma das conclusões foi um alívio de até cinco graus na temperatura em comparação com o ambiente em que os animais ficam a pleno sol. Isso se reflete em uma melhor distribuição sobre o pasto, o que é importante para a saúde do solo. O conforto térmico gera aumento da produtividade e melhoria na fertilidade das vacas.
Saúde do solo, diversidade de plantas, nutrição e bem-estar dos animais, e boas condições de trabalho das pessoas envolvidas nesse manejo são as bases para uma pecuária ser considerada regenerativa, aponta a zootecnista e pesquisadora da Cátedra Josué de Castro da USP, Alessandra Matte. “São pilares que precisam ser pensados de forma harmônica”, observa Matte.
A ideia, explica, é recuperar a biodiversidade local a partir dos serviços ecossistêmicos exercidos pela pecuária. “A pecuária tem um papel ecossistêmico que é a adubação do solo, a distribuição de sementes, é permitir que o ambiente tenha vida própria. Na pecuária regenerativa esse papel é fundamental”, cita a pesquisadora.
Elefantes sobre a mesa
Um dos exemplos desse papel ecossistêmico tem sido defendido ao longo das últimas décadas por Allan Savory, biólogo nascido no Zimbábue. Ainda na década de 1950, ele chegou a ser convencido de que a melhor saída para reverter o processo de desertificação de áreas savânicas do continente africano seria a eliminação de herbívoros de grande porte. Isso resultou na ordem de abater milhares de elefantes.
O resultado esperado não veio e a desertificação piorou. Perseguido pela decisão tragicamente equivocada, Savory passou a estudar saídas que incluíssem a presença desses animais, tendo como principal base os conceitos de Voisin. O relato dessa experiência e o mea culpa pela matança rendeu um TED Talks com quase 9 milhões de visualizações.
A partir da observação de como seria o comportamento desses rebanhos quando livres na natureza, ele desenvolveu o conceito de pecuária holística, seguido por pecuaristas em todo o mundo.
Leonardo Resende, um dos proprietários da Fazenda Triqueda, em Coronel Pacheco, Minas Gerais, foi um dos produtores a adotar esses princípios. “A pecuária regenerativa do Allan Savory, pecuária sintrópica, holística, agricultura biodinâmica, são termos parecidos para conhecimentos tradicionais e ancestrais que tentam reproduzir um movimento livre do animal antes da gente determinar o pasto”, resume o pecuarista e pesquisador, que tornou-se uma referência sobre o tema.
Carvalho, da UFRGS, usa a mesma analogia. A base do pastoreio rotatínuo, desenvolvido por ele, é justamente imitar o comportamento dos animais em seu ambiente natural independentemente se o sistema for rotacionado ou extensivo. O objetivo, explica, é oferecer ao rebanho a maior diversidade possível de pastagens, com espécies forrageiras nativas, arbustivas e de grande porte, garantindo que ele se alimente com o que efetivamente lhe interessa.
Para exemplificar, ele compara o pasto a uma pizza. “O importante não é quantos pedaços você tem, mas o que há em cada pedaço. Se eu tenho aquilo que eu preciso, que é o tamanho da pizza, a quantidade, com bastante recheio, e diversidade de alimento, tanto faz cortar em dois pedaços, quatro, seis, oito. Isso é secundário”.
O cerne do sistema, ressalta, está no pastejo moderado dessas áreas, permitindo a recuperação natural das pastagens com diversidade de espécies e uma maior fixação de carbono no solo.
Nos estudos conduzidos na UFRGS, ele conseguiu demonstrar que, ao aumentar em quatro centímetros a altura do pasto no momento de saída dos animais, ou seja, sem esgotá-lo, foi possível fixar até 20 toneladas de carbono por hectare e reduzir em 57% as emissões de metano – métricas que têm ganhado cada vez mais atenção da indústria após os compromissos de descarbonização firmados pelo setor.
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Muito além do carbono
Não à toa, o pastejo rotacionado tornou-se nos últimos anos sinônimo para intensificação pecuária, prática que muitas vezes é apresentada como uma saída mais sustentável para a produção animal por permitir um maior sequestro de carbono, mas limitada quando o foco é recuperação de ecossistemas.
De acordo com o analista de clima do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), Gabriel Quintana, esses conceitos costumam ser aplicados de forma isolada visando ganhos específicos, com destaque para as emissões de gases do efeito estufa e aumento da produtividade na mesma área.
“A nossa impressão em nossos projetos a campo é que o produtor muitas vezes está implementando alguns dos conceitos da pecuária regenerativa, mas que ainda não a configura em sua totalidade. Faltam alguns elementos ou por recurso, ou por instrução, ou por não ser o caso que se aplique ali”, comenta
A título de comparação, ele cita a redução da idade de abate dos animais cuja carne é destinada ao mercado chinês por determinação dos próprios importadores. A regra estabelece que esses bovinos sejam abatidos com até 30 meses para prevenir casos de mal da vaca louca, mas também contribui para redução das emissões de gases do efeito estufa.
“Essa redução no tempo de abate demanda um tipo de manejo mais eficiente. Vai reduzir emissões de metano por estar encurtando a vida desse rebanho, mas tem uma série de outras emissões que não estão computadas e que talvez aumentem, como o uso de combustíveis fósseis pelo uso de fertilizantes sintéticos, por exemplo”, destaca Quintana.
Mais rebanho, mais consumo
Não são poucos os desafios para escalar e implementar essas técnicas em um país de proporções continentais, seis diferentes biomas e um rebanho de 238,6 cabeças, o maior em cinquenta anos da série. Em que pese a pressão climática sobre o Brasil, o rebanho — especialmente o de corte, com participação expressiva nas exportações agropecuárias brasileiras —, deve seguir crescendo, assim como o consumo de carne pelo mercado interno.
O país ainda enfrenta desafios mais elementares, como um sistema de rastreamento confiável, capaz de atestar a origem idônea do gado, recuperar áreas degradadas e conter novas frentes de desmatamento.
Por ora, a redução das emissões de gases do efeito estufa no Brasil se baseia no mercado de carbono, um indicador “monotemático” frente a outros serviços ecossistêmicos que o modelo regenerativo de produção proporciona resgatar. “A gente tem que olhar também para o ciclo da água, para a quantidade de carboidrato que essa pastagem produz e que também deve alimentar a microbiota do solo”, explica Leonardo Resende.
Mensurar, qualificar e atribuir um valor para um conjunto complexo de estratégias produtivas que levam à independência de insumos externos desafia a lógica convencional da agropecuária. Esbarra, portanto, em desafios culturais, econômicos, mercadológicos e científicos.
Não existem informações e dados organizados sobre a adoção da pecuária regenerativa no Brasil. O professor Paulo Carvalho cita dados do Núcleo de Pastoreio Racional Voisin, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e estima haver cerca de 1,5 milhão de hectares com pastejo rotacionado no Brasil.
Segundo o Atlas das Pastagens do Brasil, ferramenta desenvolvida pelo Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás (Lapig/UFG), o Brasil tem 179 milhões de hectares. Desse total, 22% estão severamente degradados, enquanto 42% apresentam degradação considerada intermediária.
Diante dessa realidade, Carvalho, da UFRGS, destaca que qualquer melhoria mínima na forma de produzir já representa ganhos expressivos em relação à média nacional. Por outro lado, essas melhorias poderiam ser ainda mais expressivas se adotadas de forma integral, visando uma pecuária efetivamente regenerativa.
Por isso, vale lembrar, que tanto o rotacionado, quanto o PRV não são, por si só, regenerativos. Há ainda dados sobre a adoção da Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) e da pecuária orgânica, práticas que podem ser regenerativas a depender dos serviços ecossistêmicos que promovem.
Matte, da Cátedra Josué de Castro, ressalta que a pecuária regenerativa é um termo conceitualmente novo, ainda em fase de apropriação, tanto no campo, quanto na academia. “Por isso ela tem uma baixa adesão em termos de registros de uma atividade regenerativa – mas isso não significa que não haja tais práticas nas propriedades rurais. Elas apenas não são reconhecidas com esse nome”, destaca a pesquisadora.
Como exemplo, ela cita a criação de animais feita por comunidades tradicionais do cerrado e da caatinga e que ajudam a promover a preservação desses biomas.
Políticas públicas
No Brasil, o conceito de pecuária regenerativa não está contemplado nas políticas públicas voltadas à redução das emissões — pelo menos não no sentido mais amplo do termo, naquilo que diz respeito à regeneração dos ecossistemas.
Em dezembro de 2023, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) lançou o Programa Nacional de Conversão de Pastagens Degradadas (PNCPD) cujo objetivo é recuperar até 40 milhões de hectares de pastagens em dez anos. Há uma grande diferença, no entanto, entre recuperar e regenerar: a perspectiva do PNCPD é aumentar a oferta de pastagens e evitar o avanço da pecuária sobre florestas e áreas nativas. Ou seja, o critério é a recuperação da produtividade.
Ainda em fase inicial, o plano inclui técnicas como a adubação e correção do solo, plantio direto de gramíneas mais produtivas, integração lavoura, pecuária e floresta, e manejo de carga animal.
Em nota, o Ministério da Agricultura e Pecuária informou que “o tema vem ganhando cada vez mais espaço na agenda nacional com resultados interessantes e vem sendo disseminado a campo especialmente por meio de projetos privados de determinados grupos como laticínios, por exemplo”. E que o plano de recuperação de pastagens tem como base as tecnologias do Plano +ABC (mais amplo, voltado à promoção da agricultura de baixo carbono) mitigadoras dos processos de emissão de gases de efeito estufa.
Perguntamos ao MAPA se há algum instrumento que vá além da recuperação da produtividade econômica e promova reconstrução das funções ecológicas do solo e do ecossistema, mas não obtivemos resposta.
Fizemos um pedido de entrevista para entender se e como a perspectiva regenerativa estaria incluída nas políticas públicas atuais, mas não fomos atendidos.
Na avaliação do produtor Leonardo Rezende, o plano do governo é bom, mas ele alerta que em poucos anos essa pastagem começa a perder capacidade produtiva. “Em 10 anos tem que ser reformada novamente. E a pastagem é uma cultura perene, ela deveria ser eterna. Eu tenho pastos que vieram do meu avô e que são produtivos até hoje”, pondera.
Com a recuperação dessas pastagens, a área de pecuária no Brasil poderia ser reduzida em até um terço, segundo um estudo publicado em 2018 com base em dados do MapBiomas.
Esse processo depende de um trabalho tanto governamental, como de assistência técnica e extensão rural, avalia Matte. “Pensar a recuperação de pastagens não é plantar uma espécie forrageira e com isso recuperar aquele ambiente. O caminho é entender quais conjuntos de espécies forrageiras podem ser melhor recomendados para recuperar esse solo”, destaca a pesquisadora. Segundo ela, o principal movimento registrado hoje no país tem sido a conversão dessas áreas degradas para áreas de agricultura ou pecuária intensiva, dependentes de adubação mineral e produtos químicos.
Assistência técnica e extensão rural
A intensa troca de experiências entre pesquisadores e a oferta de assistência técnica e extensão rural foram fundamentais para o manejo sustentável dos animais na Copavi. O assentamento teve apoio da da Universidade Federal de Santa Catarina, Daniela fez mestrado em agroecologia, e a introdução do mogno africano teve apoio da Embrapa e do crédito obtido por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o Pronaf.
Além de ganhar independência de insumos externos e, com isso, obter mais lucratividade, a adoção desse conjunto de técnicas possibilitou à Copavi ganhar resiliência diante de períodos de seca cada vez mais intensos. Diferentemente da pecuária convencional, há um conjunto de “ferramentas” a que se pode recorrer quando as pastagens sofrem com a estiagem.
A intenção é aumentar a produção dos laticínios e obter autorização para comercializá-los em outros municípios. Para isso, a Copavi tenta captar R$ 2,6 milhões por meio do Financiamento Popular para Produção de Alimentos Saudáveis, o Finapop, que permite a pessoas físicas investir a partir de R$ 100 com remuneração fixada em 11% ao ano. O projeto está em fase de captação até janeiro de 2025.
De acordo com Daniela, a introdução dessas espécies arbóreas traz muitos benefícios. “Seria importante termos subsídio para isso, como há na Europa. Os benefícios que essa forma de produção gera para o local e para o global são muito grandes”.
Glossário
Pecuária orgânica:
É uma forma de manejo em que o gado e o pasto são tratados sem o uso de contaminantes, como agrotóxicos, adubos químicos solúveis, antibióticos e hormônios. É um modelo de produção que leva em consideração a saúde do solo, o uso eficiente da água, o bem-estar dos animais e a preservação do ecossistema e dos recursos naturais. A água deve estar livre de resíduos e a área deve ser protegida da contaminação vinda de outros estabelecimentos. Os animais são tratados com medicamentos fitoterápicos e homeopáticos, e alimentados com pasto e ração livre de transgênicos. Para ser orgânica, a produção precisa proteger matas ciliares, nascentes e corpos d’água, entre outras exigências ambientais. A pecuária orgânica requer certificação e passa por auditorias constantes. Há critérios rigorosos e bem definidos em lei, decretos e instruções normativas. A pecuária orgânica pode ou não ser regenerativa, a depender dos serviços ecossistêmicos que oferece.
Sistemas agroecológicos:
A perspectiva agroecológica é mais abrangente que a orgânica. Além da sustentabilidade ambiental, envolve também relações de produção, trabalho e comércio mais justas, a valorização das comunidades e do conhecimento local no cultivo da terra e no manejo dos animais. Utiliza práticas sustentáveis e promove a biodiversidade ao minimizar ou evitar o uso de agrotóxicos. Também promove a integração entre agricultura, pecuária, florestas e outras práticas que aumentam a eficiência e a resiliência dos ecossistemas. É uma abordagem mais ampla e sistêmica, que considera a regeneração do meio ambiente, mas também os aspectos sociais, humanos e culturais na busca por modelos mais justos, tanto para a natureza, quanto para as pessoas envolvidas.
Serviços ecossistêmicos:
São o resultado de processos naturais e das interações entre os elementos de um ecossistema que geram, direta ou indiretamente, benefícios que podem ser apropriados pelos seres humanos. Na pecuária regenerativa, alguns exemplos são a regulação de gases e o sequestro de carbono, a ciclagem de nutrientes no solo, a regulação climática e do ciclo da água, a biodiversidade, entre outros benefícios.
ILPF (Integração Lavoura-Pecuária-Floresta):
Sistema que consorcia o plantio de grãos com árvores e pastagem na mesma área. Pode ou não ser regenerativo, a depender dos serviços ecossistêmicos que promove. No Brasil, a técnica tem sido promovida por uma rede formada por empresas privadas e instituições de pesquisa, como a Embrapa.
Pastoreio racional Voisin:
Método de manejo de pastagens elaborado na década de 50 pelo bioquímico francês André Voisin. É considerado o primeiro sistema de rotação de pastagem do mundo e baseia-se em três leis: lei de ocupação, determina que o tempo que o rebanho permanece no pasto deve ser curto o suficiente para que não prejudique sua rebrota; a lei do repouso determina que é preciso respeitar o tempo de rebrota da pastagem antes de retornar com o gado na mesma área; e, por fim, a lei da ajuda, que preconiza o auxílio humano aos animais para o maior e melhor consumo possível das gramíneas.
Rotação de pastagem:
Método de manejo de pastagem que consiste em dividir a pastagem em áreas menores, chamadas de piquetes, na quais os animais são mantidos por determinado período de forma alternada.
Silagem:
Matéria vegetal conservada por meio do processo de ensilagem, técnica de conservação de matéria vegetal através de fermentação anaeróbica após corte, picagem, compactação e vedação em silos.
Ramoneio:
Comportamento animal de consumir folhas de arbustos e árvores, tal como faz durante o pastejo.
Gases de Efeito Estufa (GEE):
Principais causadores do aquecimento global e das mudanças climáticas, os gases que mais contribuem para o chamado efeito estufa são o dióxido de carbono e o metano. Segundo relatório do Observatório do Clima, mudanças de uso da terra – que causam a devastação de todos os biomas brasileiros – foram responsáveis pela emissão de 1,12 bilhão de toneladas brutas de gás carbônico, ou 48% do total nacional. A agropecuária aparece com 617 milhões de toneladas, ou 27% das emissões brutas do país. Somando-se as emissões por desmatamento e outras mudanças de uso da terra com as do setor agropecuário, conclui-se que a atividade agropecuária responde por 75% de toda a poluição climática brasileira.
Ruminantes:
Mamíferos herbívoros com a capacidade de digerir matéria vegetal a partir do processo de ruminação, que consiste em regurgitar e mastigar novamente o alimento ingerido. Para isso, esses animais contam com um sistema digestivo específico, que inclui a presença do rúmen, espécie de “estômago” onde bactérias, protozoários, fungos e arqueas realizam a decomposição das paredes celulares vegetais. Além dos bovinos, são exemplos de ruminantes caprinos e ovinos, girafas, camelos, veados, búfalos, entre outros.
Emissões entéricas:
Liberação de gases, entre eles o metano, gerada no processo de digestão de ruminantes. Em sua maioria, são emitidas em forma de arroto.
Artigod A pecuária pode ser sustentável? publicado em O Joio e O Trigo.
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