Escolas livres de ultraprocessados são uma realidade inevitável? 

Enquanto a cidade do Rio de Janeiro avança na implementação da lei que proíbe ultraprocessados em escolas, debate no estado e em São Paulo é travado por lobby e discurso de extrema-direita

“A gente nunca mais viu criança nenhuma chegar com pacote de biscoito dentro da escola”, conta Patrícia Azevedo, de 52 anos. Há 22 ela é merendeira nas escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro. “Só teve unzinho, no ano passado, aí passamos a questão para a direção, que conversou com a mãe dele: ‘Mãe, deixa ele comer comida, a escola tem comida para oferecer. Então, não compra biscoito, não dá biscoito’. Mas foi um caso só.” 

O que se deu no Rio de Janeiro não foi obra do acaso: é o resultado de uma legislação que proíbe a oferta de ultraprocessados no ambiente escolar. “O cardápio sempre foi repetitivo, mas, do ano passado para cá, houve uma melhora, no sentido de mais nutrientes, variedade de legumes e frutas”, conta Patrícia. “Essa mudança foi muito positiva, porque estou vendo atualmente crianças, até pequenas, que gostavam de besteiras, de biscoitos, comendo comida. Estão comendo bem melhor. Isso está dando orgulho na gente.”

Achocolatados e sucos açucarados deram lugar a vitaminas de frutas no café da manhã. As frutas, agora, variam de acordo com a estação. O almoço conta diariamente com arroz, feijão e um legume ou uma verdura, além de frango ou carne. Interessada pelo tema, Patrícia está cursando Nutrição e tem gostado de observar a mudança nos hábitos alimentares dos estudantes. 

“A gente cobra. Outro dia chegou uma entrega de carne sem etiqueta de identificação, com informação de origem e data de validade. Ou seja, qualidade duvidosa, a gente não tinha como saber. Então, a gente não recebeu. A gente também faz a nossa parte”, enfatiza. 

Considerando que, entre a educação infantil, o ensino fundamental e o médio, as crianças e os adolescentes brasileiros passam ao menos doze anos na escola, onde permanecem cerca de um terço do dia de segunda a sexta, é claro que o ambiente escolar é chave para a educação alimentar e nutricional necessária para desenvolver sua consciência acerca do tema e assegurar seu direito à saúde. Entretanto, ainda há muita luta pela frente até que esse direito fundamental seja garantido em todo o país, com grandes discrepâncias entre estados e municípios na regulação da alimentação no ambiente escolar. 

O debate nas casas legislativas municipais e estaduais anda descompassado no Rio de Janeiro e em São Paulo: avançou nas primeiras, a duras penas, com a aprovação de uma lei que restringe a oferta e a publicidade de ultraprocessados nas escolas cariocas e discussões na Câmara Municipal paulistana; mas, nas assembleias legislativas fluminense e paulista, encontra-se interditado — e especialmente permeado por discursos ideológicos de cunho conservador, de deputados estaduais comprometidos com a indústria de ultraprocessados. 

Foi o que aconteceu na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). “Eles transformam em piada, fazem chacota. É a forma que eles têm de desqualificar totalmente o debate. Enquanto a gente não conseguir debater seriamente na Alerj, como foi feito na Câmara, não consegue avançar”, critica Fabíola Leal, analista de advocacy do Instituto Desiderata. 

O Projeto de Lei 4198, de 2021, virou alvo da extrema-direita. O PL proíbe o consumo e a comercialização de ultraprocessados “nas cantinas e demais locais de venda de produtos e alimentos nas escolas públicas e privadas do Estado do Rio de Janeiro”. 

A proposta, que recebeu 39 emendas e foi transformada em um projeto de alteração da Lei 4.508/2005 (que proíbe a comercialização de produtos que contribuem para a obesidade infantil em escolas públicas e privadas do estado), rendeu um debate acalorado, em que deputados reduziram a questão do direito à alimentação saudável nas escolas a decisões individuais sobre as quais o Estado não deve arbitrar, usando argumentos como: a defesa da “liberdade”, o direito das famílias de decidirem sobre a criação dos filhos e o problema da obesidade como consequência de comportamento individual e moral.

Foi durante o debate legislativo a respeito do tema que o deputado estadual bolsonarista Rodrigo Amorim (ex-PSL e atual União Brasil) — que ficou conhecido por quebrar a placa de Marielle Franco em 2018 — fez uma declaração transfóbica contra a vereadora de Niterói Benny Briolly (Psol), primeira travesti eleita no estado do Rio de Janeiro, referindo-se a ela como “aberração da natureza”.

Não satisfeito, o parlamentar reproduziu estigmas sobre a obesidade. “Agora, eles que neste momento estão tão preocupados com a obesidade, há um vereador do partido deles, em Niterói, que é uma verdadeira aberração da natureza, que é um belzebu – aliás, é um boizebu, porque com aquele corpinho não é belzebu, aquele corpinho é corpo de boi – que criou uma palavra. Disse agora que será candidato a deputrava. Ou seja, destruindo o nosso vernáculo, a política. Eles que têm um vereador que se veste de Minnie no Carnaval, que parece um porco humano de tão obeso que é, eles não se preocupam”, disse Amorim, em 10 de maio de 2022, no plenário da Alerj.

Fabíola entende que a tramitação na Câmara Municipal foi o mote para apreciar o caso também em âmbito estadual. “Só que a indústria também estava já alerta por causa do debate municipal e o que me contaram nas conversas de corredor na Alerj foi que a indústria estava ligando para os deputados. Eu não os vi lá e eu estive na Alerj durante a votação, mas algumas pessoas falavam ‘tá difícil essa votação, tem gente ligando para o gabinete pedindo para arquivar o projeto’. E aí eu fui para o plenário já sabendo que seria uma briga muito grande. Na hora da votação, a coisa foi escalando para esse debate ideológico que a gente não tinha vivido na Câmara”, recorda a advogada. 

Se o lobby da indústria funcionou bem na Alerj, onde o projeto segue estagnado e, segundo Leal, “ao menos com a atual composição” da Casa, sem perspectiva de avanço, na Câmara Municipal não foi assim: a pressão da indústria — que envolveu inclusive um documento assinado pela Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abias) e outras seis organizações, relativizando a classificação dos alimentos pelo grau de processamento — não conseguiu impedir a aprovação, em 2023, do PL 1662/2019, que regulamentou o ambiente alimentar escolar nas unidades públicas e privadas do município. 

Entretanto, isso não ocorreu sem que o debate fosse também permeado por discursos de cunho ideológico, segundo Leal, principalmente da parte dos vereadores de extrema-direita. “A gente ouvia essa coisa de ‘Ah, mas e o direito dos pais de escolher o que os seus filhos vão comer?’, ‘Ah, porque os meus filhos só comem o que eu deixo’. E a gente argumentou que no espaço da escola não é sobre escolha. As crianças não têm direito de escolha, elas consomem o que está ali diante delas e a gente quer que elas tenham opções mais saudáveis, por isso a ideia é tirar esses alimentos prejudiciais à saúde”, conta a advogada.

A relevância do espaço escolar e a falta de escolha mencionada por Fabíola Leal são ilustradas por um levantamento inédito. O projeto Comercialização de Alimentos em Escolas Brasileiras (Caeb) coletou informações com proprietários e gestores de cantinas escolares em todas as capitais do país entre 2022 e 2024. Também foram entrevistados comerciantes que trabalham nas portas ou nos arredores das escolas. O intuito foi avaliar o ambiente alimentar das escolas particulares do ensino fundamental e médio de grandes cidades brasileiras, de modo a criar propostas para auxiliar no desenvolvimento de hábitos alimentares mais saudáveis.

“O índice de saudabilidade é uma medida-resumo que vai te dizer o quão saudável é aquele estabelecimento. Então, vai analisar uma proporção entre a comercialização de alimentos processados, in natura e minimamente processados, e faz uma conta, converte isso no score, num valor”, explica a nutricionista e professora Larissa Loures Mendes, do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela é a coordenadora do Caeb.

Considerando-se 100 o cenário ideal em relação ao índice de saudabilidade, a média do Brasil é de 56,6. O melhor cenário é o de Porto Alegre, com 68,9, e São Paulo está em 5º lugar, com 63. Já no Rio de Janeiro, a coleta de dados foi uma das primeiras realizadas pelo Caeb, ainda no ano de 2022, de modo que não é possível avaliar concretamente a mudança desde a implementação da lei. Entretanto, foi exatamente na capital fluminense que o Caeb encontrou o pior cenário do país: 45,1 em índice de saudabilidade.

Em relação à comercialização de alimentos saudáveis, a discrepância entre as duas cidades é enorme, conforme mostra a pesquisa: quando se trata de frutas frescas, por exemplo, enquanto no Rio de Janeiro o índice era de apenas 7%, em São Paulo era de 54,1%; já sanduíches sem recheio ultraprocessado, no Rio a ocorrência foi de 15% contra 72,5% em São Paulo; o mesmo ocorre com salgados assados sem recheio ultraprocessado: 31,5% no Rio e 79,3% em São Paulo. 

“E quando a gente vê o que está sendo comercializado, a gente até se assusta”, diz Mendes, que se revolta com a comercialização de água, que no Rio de Janeiro foi de 89,5% e em São Paulo, de 68,3%. “A bebida mais comercializada nas escolas é água, que era para ser um bem de direito. Todo mundo pensa ‘nossa, que bom, né? Água é saudável’. Não, água não era nem para ser comercializada, deveria ser gratuita, então eu nunca olho isso com normalidade. Não era para aparecer esse número, água é para estar no bebedouro e de fácil acesso para as crianças”, enfatiza. 

Alimentação: escolha individual ou problema coletivo?

De acordo com a nutricionista Giorgia Russo, consultora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), a pressão por políticas públicas de defesa e promoção do direito à saúde alimentar nos ambientes escolares teve início no momento em que a ciência da nutrição deixa de “culpabilizar o indivíduo por suas escolhas alimentares” para “entender cada vez mais a influência do ambiente alimentar nessas escolhas”, isto é, “o quanto o acesso físico e econômico, entre outros aspectos, interfere nas escolhas”. 

Não se tratam, portanto, de decisões sobre o que se deseja consumir, escolhas conscientes sobre o que faz bem à saúde ou do que se gosta, segundo ela: “É muito mais sobre o que está sendo ofertado e sobre a propaganda do que efetivamente uma decisão.” A questão deixa de ser tratada na esfera individual para ser entendida como um problema coletivo vinculado ao contexto cultural e social. 

“Quando a gente começa a estudar a influência do ambiente, não tem como não enxergar política pública. Há o caminho da promoção da alimentação adequada e saudável, envolvendo informações e ações para apoiar boas escolhas alimentares. O acesso à educação sobre isso incentiva e torna mais factível aquela escolha. Mas a ação que efetivamente vai proteger o direito à saúde alimentar é a implementação de uma política pública que ofereça a estrutura necessária para se fazer boas escolhas alimentares”, explica Russo, que é especialista em intervenções e políticas públicas na área, presidente da Comissão de Gestão da Lei dos Orgânicos na Alimentação Escolar e integrante do Comitê da Criança e do Adolescente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Para ela, é especialmente importante haver medidas regulatórias que incidam sobre cidadãos em idade escolar, que têm “pouco discernimento” e “ainda estão formando senso crítico”. 

Além disso, a possibilidade de regulação do ambiente escolar por governos estaduais e prefeituras foi iluminada pela existência de um caminho bloqueado: a dificuldade de pautar o tema em âmbito federal durante o governo de Jair Bolsonaro. 

“Precisava de um posicionamento nacional sobre isso, só que o cenário político era muito adverso e a gente observou que no Congresso dificilmente conseguiria avançar com um PL nesse sentido. Então chegamos a fazer algumas proposições, tem alguns PLs no Congresso que a gente acompanha, mas nada avançava”, afirma Russo. 

A estratégia para se chegar a uma regulamentação nacional é que esse percurso seja iniciado nos municípios e estados. Até que, em 12 de dezembro de 2023, Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto nº 11.821, que orienta a restrição da comercialização de produtos ultraprocessados no ambiente escolar das redes públicas e privadas de educação básica, apresentando diretrizes para a construção de regulamentações estaduais e municipais sobre o tema. A conquista resultou da luta da Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, coalizão que reúne diversas organizações na luta pela defesa e promoção da segurança alimentar e nutricional no Brasil.

“Esse decreto é um marco muito importante, porque foi o primeiro decreto presidencial na história das regulamentações nacionais que incorporou a palavra ‘ultraprocessados’”, afirma a nutricionista e epidemiologista Maria Alvim, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP) e professora da Santa Casa de São Paulo. 

Apesar de o Guia Alimentar para a População Brasileira, editado em 2014 pelo Ministério da Saúde, recomendar explicitamente que se evite o consumo de ultraprocessados, isso não havia resultado em políticas públicas perenes que incorporassem o conceito proposto na Classificação NOVA, que divide os alimentos pelo grau e pelo propósito do processamento. 

O decreto representou um avanço, mas ainda incompleto. “Ele não tem nenhum caráter mandatório, é só um instrumento de direção, de referência. Então, tem um valor simbólico importante, mas que não está legislando absolutamente nada. Não existe nenhuma previsão de sanção para quem não cumpre o que está determinado ali. Efetivamente, é muito pouco”, completa Maria Alvim. 

É, portanto, nas casas legislativas dos estados e municípios que a batalha continua se dando e, se de um lado existe o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que, “com todas as suas falhas”, segundo Giorgia Russo, cumpre um importante papel de proteção à saúde das crianças e adolescentes de escolas públicas, também existem, nas escolas e em seu entorno, produtos ultraprocessados “competindo com o Pnae”, a publicidade e as ações promovidas pela indústria de alimentos dentro das escolas. 

Oferta de frutas em escola pública de Brasília. Foto: Lúcio Bernardo Jr./Agência Brasília

Rio de Janeiro: avanço municipal contrasta com atraso estadual

Muito antes de o debate acerca dos ultraprocessados alcançar o nível em que se encontra hoje, a cidade do Rio de Janeiro contava com o Decreto Municipal nº 21.217, de 1 de abril de 2002. À época, a expressão “ultraprocessados” e a teoria que a cerca não existiam. Então, o texto mencionava somente o combate à obesidade, proibindo a aquisição, a confecção, a distribuição, a venda e a propaganda de “balas, doces a base de goma, gomas de mascar, pirulito, caramelos, pó para preparo de refresco, bebidas alcoólicas, alimentos ricos em colesterol, sódio e corantes artificiais”. 

Como se vê, eram poucos ainda os ingredientes considerados nocivos à saúde, naquele que foi tido pelo próprio decreto como “o primeiro passo no programa de alimentação sadia com vistas ao combate à obesidade”, o que envolveu a produção e a distribuição de cartilhas de orientação alimentar às escolas, aos alunos e às famílias, pela Unidade de Nutrição e Segurança Alimentar Annes Dias (Unad) — órgão responsável pela coordenação técnica da área de alimentação e nutrição da prefeitura. 

“O que tinha era uma lista de ingredientes críticos, como os nutricionistas chamam, altos em gordura, em açúcar, em sódio. Então, esses alimentos não poderiam estar nas cantinas. Só que isso nunca foi de fato regulamentado, não tinha ali explícito quem ia fiscalizar, ninguém cumpria. Era mais uma norma que não pegou”, afirma Fabíola Leal, do Instituto Desiderata.

Foi no apagar das luzes de 2019 que houve a proposição de um projeto de lei para regular o ambiente escolar de fato. “Lei é uma coisa que tem mais força, passa por um processo mais longo de aprovação e, para modificação, também é mais difícil, então é uma segurança de que aquilo é uma política pública perene”, explica Leal. 

“O projeto também tratava de proibir ‘alimentos não saudáveis’ nas escolas. Então, escrevemos um substitutivo, incluindo que era uma proibição dos ultraprocessados, porque já havia bastante estudo sobre os malefícios desses alimentos”, conta. Foi incluído, então, no PL, o conceito de ultraprocessados com base no Guia Alimentar. 

Inicialmente, entretanto, o projeto “ficou completamente parado e ninguém tinha interesse” em defender a pauta, segundo a advogada. A pressão da indústria de alimentos contra o projeto foi intensa e nenhum parlamentar parecia muito disposto a enfrentar o lobby.

Em um processo intenso de luta do Desiderata e de outras entidades que compõem a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, depois de muitas reuniões, discussões, distribuição de material informativo e ações diversas para difundir informação de qualidade sobre alimentação como um direito fundamental à saúde, chamando parlamentares à responsabilidade, acabou aprovado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 13 de junho de 2023, o substitutivo

Nas 1.557 unidades da rede municipal carioca, onde as refeições são produzidas por merendeiras, o consumo de ultraprocessados foi de fato reduzido a zero, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação. “O cardápio baseia-se no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), garantindo acesso a alimentação saudável por meio de alimentos variados e adequados à formação de bons hábitos alimentares. O cardápio é elaborado por nutricionistas da Unidade de Nutrição Annes Dias, de forma muito nutritiva, balanceada e saborosa. Para que a alimentação ficasse ainda mais adequada, faltava cortar os biscoitos, e isso foi feito em julho de 2023”, informa a SME, em nota à reportagem. 

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São Paulo, parada no meio do caminho

Somente quando foi convidada pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo para ser a chef responsável pelo Projeto Cozinheiros da Educação, em 2015, foi que Janaína Torres — chef do restaurante paulistano Bar da Dona Onça, famoso pela valorização da culinária tradicional brasileira — tomou conhecimento do nível da alimentação oferecida aos estudantes da rede pública municipal. 

“Na minha cabeça, a merenda das escolas era tratada com dignidade e pensei que o que eles queriam era que eu fizesse receitas aleatórias. Mas quando eu cheguei lá e me deparei com comidas que ficavam dois anos armazenadas sem estar na geladeira, enlatadas e tudo mais, eu vi que havia um problema muito sério de alienação política da minha parte em relação à alimentação do meu país”, recorda. 

Ela estava incumbida de elaborar o novo cardápio e dar oficinas às cozinheiras da rede, até então acostumadas com ultraprocessados em latas, para que os pratos passassem a ser executados adequadamente. Diante da ausência de produtos in natura, a chef percebeu que teria que começar do zero. 

“O patrimônio cultural alimentar teria que ser construído a partir de um alicerce, de um concreto, que seria transformar toda a alimentação, primeiramente, em produtos naturais, produtos que não fossem ultraprocessados”, conta ela, que faz uma analogia com o jogo Banco Imobiliário, em que às vezes é preciso dar muitos passos atrás para só depois avançar. 

Conhecida por defender “o desenvolvimento do patrimônio alimentar através dos territórios”, como ela diz, ao longo dos quatro anos em que trabalhou no projeto, desenvolveu propostas levando em conta a cultura alimentar de diferentes territórios do país e da própria cidade. 

Iniciado em agosto de 2016, o projeto alcançou cerca de 1.800 escolas e 2,3 milhões de estudantes do estado, de acordo com o Guia para Gestores “Ambiente Alimentar das Escolas”, do Idec. 

“Fiz um cardápio brasileiro, uma forma de homenagear todo o Brasil através de um cardápio, sabendo que não era a preservação, como eu gostaria, efetivamente, por região, mas um patrimônio então mais global para conseguir conquistar a mudança de nutrientes e produtos. Foi a forma mais rápida que encontrei para fazer isso acontecer. E realmente aconteceu”, orgulha-se Torres. 

Entretanto, o Projeto Cozinheiros da Educação foi suspenso na gestão seguinte do estado, iniciada em 2018. “Houve um retrocesso quando a gente saiu, mas, em 2020, vem a resolução 6 do Pnae, em que o governo federal estabelece a proibição de alguns ultraprocessados e um limite de ultraprocessados. Então o estado teve que se readequar em termos de compras de gêneros. O que a gente lamenta muito é o fato de ter sido interrompido o processo de formação das cozinheiras, porque ainda faltavam muitas escolas”, afirma Giorgia Russo, que coordenou o projeto.

Hoje, o Projeto de Lei nº 891/2019 tramita na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), para instituir o Programa Estadual de Alimentação Escolar, que prevê a restrição da “aquisição de alimentos ultraprocessados e processados a 30% dos recursos financeiros destinados à execução do Programa” e que o estado apresente, até um ano depois de a lei entrar em vigor, “um plano de redução paulatina da aquisição de alimentos ultraprocessados e processados, tendo como meta o limite de 10%, no prazo de 04 (quatro) anos”. Mas, assim como no estado do Rio de Janeiro, o debate encontra-se estagnado.

“O ideal é que a gente tivesse todas as escolas da rede estadual centralizadas com essas cozinheiras conscientes e empoderadas e, principalmente, avançando para a questão da educação alimentar e nutricional, ou seja, elas se tornando um ator social dentro das escolas. Esse passo não foi dado”, avalia a consultora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec.

Já no município, tramita o PL 344/2023, para proibir a oferta e a venda de alimentos ultraprocessados em cantinas de escolas públicas e privadas da cidade. Em dezembro de 2023, uma carta assinada por Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas (Abicab), Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados (Abimap) e Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir) foi distribuída aos vereadores para solicitar a retirada de pauta do PL 344/2023, alegando “inadequação do conceito de ultraprocessados”. 

A carta afirmava, por exemplo, que “a adoção e conceituação do termo ‘ultraprocessados’ não encontra consenso na ciência, na legislação ou em órgãos reguladores de saúde e vai de encontro ao entendimento de representantes das áreas de pesquisa e ciência de alimentos, segundo os quais é equivocado classificar a qualidade de um produto industrializado pelo seu grau de processamento. Afinal, não existe alimento bom ou ruim, mas, sim, dieta desequilibrada”. 

O Idec então redigiu uma nota para rebater os argumentos apresentados pela indústria. “Ao contrário das informações apresentadas pelos representantes da indústria de alimentos e bebidas não alcoólicas, nos últimos 10 anos, a literatura nacional e internacional tem demonstrado inúmeras evidências científicas sobre os efeitos negativos dos produtos alimentícios ultraprocessados na saúde das pessoas”, diz o documento. 

Em junho de 2024, houve na Câmara Municipal uma audiência pública para discutir os impactos negativos dos ultraprocessados na saúde de crianças e adolescentes, com a participação de especialistas, que ressaltaram a importância de priorizar alimentos in natura ou minimamente processados no ambiente escolar. 

Aprovada em primeira votação, a proposta aguarda a aprovação definitiva — mas a indústria tem feito pressão contrária. Não há perspectiva de que nada seja definido ainda em 2024, em função das eleições municipais. 

Segundo a nutricionista Sheila Costa, diretora do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep) e conselheira do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Comsea), o que assegura, hoje, a qualidade da alimentação nas escolas da rede municipal é o fato de as diretrizes do Pnae serem seguidas. 

Mas ela enxerga um risco de retrocesso. “Aqui em São Paulo a gente tem uma lei que garante que a compra de 30% da alimentação escolar sejam de produtos orgânicos, mas isso está sendo ameaçado agora, porque querem privatizar 100% a alimentação nas escolas. A mão de obra da alimentação escolar já é privatizada, que são as merendeiras, as cozinheiras escolares. Mas a gente tem um departamento com responsável técnico, nutricionista, que responde inclusive pelo cumprimento do Programa de Alimentação Escolar”, critica. 

Para ela, essa mudança vai impactar a qualidade dos alimentos. “Quando você compra em grande quantidade, você garante fornecedores exclusivos, garante preço. Agora, as empresas ficarão responsáveis pela compra ou as unidades escolares que são conveniadas fazem essa compra diretamente. Você perde esse poder de barganha, de negociar valor e até de comprar orgânico. No comércio normal, nos mercados, é muito mais caro. Quando você compra direto do produtor, você tem um custo menor. E, quando você faz a compra direta pela prefeitura, você consegue comprar pelo produtor. Agora, a empresa pequena, a empresa em si terceirizada, não vai ter esse mesmo interesse”, completa. 


Desafios são maiores em escolas particulares

Diferentemente das escolas públicas municipais, as particulares não contam com merendeiras, mas com cantineiros. A Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro afirma que visita regularmente as instituições particulares ao longo do ano letivo e não houve registro de irregularidades em relação ao cumprimento da lei aprovada em 2023. 

Entretanto, faltam dados sobre as unidades privadas, onde pesquisadores têm mais dificuldade de entrar para realizar coleta. Em geral, cantineiros temem que a retirada de ultraprocessados de suas prateleiras leve a uma grande perda nos lucros — e não é difícil compreender a preocupação. Quando o Caeb teve início, Larissa Loures Mendes pensava que encontraria grandes redes nas escolas, mas isso é “uma minoria”, afirma. 

A realidade conhecida pela pesquisa é de pequenos comércios, muitas vezes geridos por famílias. “As cantinas brasileiras normalmente são pequenas e têm poucos funcionários. Então, quando a gente fala que a cantina tem que ser mais saudável, tem que levar em conta que, se ela tem pouco funcionário e pouca infraestrutura, como que a gente vai conseguir que ela seja saudável, se o padrão saudável requer uma produção baseada em alimentos in natura e minimamente processados?”, questiona a coordenadora do Caeb. 

É preciso, portanto, promover a viabilidade econômica da mudança do ambiente alimentar que se naturalizou até então para o ambiente saudável que se faz necessário, de acordo com Mendes, levando em conta variáveis como preços dos alimentos saudáveis, tempo e mão de obra para produzir refeições com alimentos in natura ou minimamente processados e a aceitabilidade por parte dos estudantes. 

“Para mudarmos essa realidade, precisamos ter a lei, o dispositivo legal, mas também criar um instrumento que estimule o sujeito a fazer uma mudança naquele pequeno empreendimento. A gente precisa apoiar essas pessoas. Eu já fui mais radical com isso, mas, para adotarmos um processo bruto de fiscalização, para conseguirmos cobrar essa mudança, precisamos entender que tipo de incentivo é possível oferecermos para tornarmos esses estabelecimentos saudáveis”, defende. Além disso, a presença de nutricionistas em escolas particulares contribui muito, segundo ela. 

Outro aspecto importante, a educação alimentar e nutricional precisa envolver os pais, que muitas vezes exigem que os filhos possam consumir alimentos nocivos à saúde. É o que conta Joana*, funcionária de uma cantina há dez anos, em uma escola particular localizada em um bairro de classe média-alta na Zona Oeste da cidade de São Paulo, que pediu para não ser identificada por receio em relação a seu emprego. Segundo a funcionária, o consumo de alimentos ultraprocessados aumentou na escola após a pandemia de Covid-19 e às sextas-feiras os próprios pais dos alunos fazem questão que eles possam consumir mais desses alimentos, como refrigerantes e doces. 

“Depois da pandemia, é muito chocolate, bolo de pote, brownie. E pode ser qualquer idade”, diz a funcionária, que conta que os sucos mais vendidos hoje são os de lata. “Antes eu vendia muito suco natural e a demanda caiu muito. Eu vendia muito misto quente, com queijo branco ou só o queijo prato, queijo com presunto ou peito de peru. Agora é mais croissant e pão de queijo. A demanda de frutas também caiu muito. Eu tive que começar a vender a fruta separada, porque salada de frutas quase não sai mais. Antes da pandemia, saía muito”, completa.

Na escola onde Joana trabalha, as refeições dos alunos são escolhidas pelos pais por meio de um aplicativo que é usado em diversas escolas e universidades do país. Assim, a responsabilidade pela alimentação das crianças e adolescentes é somente dos pais, como se o Estado nada tivesse a ver com a garantia do direito à saúde alimentar de pessoas em idade escolar. 

O descontrole é completo e a referência do Pnae e do Guia Alimentar para a População Brasileira não é suficiente sem uma regulamentação específica que restrinja de fato a comercialização de ultraprocessados. “O Pnae tem uma regulamentação super robusta, é uma coisa muito bonita e bem-sucedida. Claro, a gente consegue pensar em alguns pontos de melhoria, mas, em geral, é muito bom e, inclusive, mais recentemente, com a regulamentação de ultraprocessados na merenda escolar. Só que aí a gente tem essa barreira que são as cantinas, um território meio sem lei”, critica a pesquisadora Maria Alvim. 

A nutricionista Giorgia Russo ressalta que é exatamente por isso que é necessário haver uma lei e um trabalho de conscientização envolvendo as famílias. “O próprio gestor escolar, tendo uma lei, consegue se posicionar melhor e levar mais facilmente esse debate pra comunidade. Enquanto a gente não tem essa lei, a gente pode também fazer esse debate dentro das escolas. É necessário um trabalho de conscientização da comunidade. É sentar e conversar sobre isso, mostrar que existe possibilidade. A gente consegue ter uma regra dessa na escola e todo mundo se alimentar bem. Então, é sair do lugar de que ‘comida de criança é ultraprocessado’ e entender que a criança e os pais que já têm o hábito do ultraprocessado podem contar com a escola como um caminho e uma forma de transformar a alimentação”, defende. 

A criança que consome ultraprocessados influencia outras no ambiente, de modo que não se trata somente do que um responsável permite que seu filho coma, mas do que isso envolve no contexto em que essa criança está inserida, de acordo com a consultora do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec. 

“E esse potencial que a gente tem de influência do ambiente, ao invés de ser usado para fazer com que quem come bem passe a comer mal, deve ser o contrário: essa criança mais acostumada com o ultraprocessado começa a ver os colegas comendo alimentos saudáveis e adequados, e começa a consumir esses alimentos, que é o que a gente vê quando você coloca uma norma e estabelece isso dentro da escola”, explica.

Artigod Escolas livres de ultraprocessados são uma realidade inevitável?  publicado em O Joio e O Trigo.

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