Prefeitura de SP paga milhões a projetos que servem comida estragada e entre fezes de pombo à população de rua 

Image

Percevejos, banheiros cobertos de urina e vômito, comida usada como método de humilhação e denúncias frequentes: ainda assim, organizações seguem à frente de programas terceirizados de abrigo

Programas terceirizados de abrigo à população em situação de rua em São Paulo investigados pelo Joio estão alimentando seus abrigados em meio a fezes de pombo, e servindo marmitas azedas, estragadas e com ultraprocessados.

Estes projetos recebem milhares de reais por ano do Fundo Municipal de Assistência Social (FMAS) para dar o suporte necessário a pessoas vulneráveis que querem deixar as ruas paulistanas. No entanto, abrigam indivíduos e famílias em galpões e hotéis sem água, infestados de percevejos, com sanitários quebrados e banheiros cobertos de fezes, urina e vômito.

As instituições já foram alvo de investigações pela Comissão Especial de Direitos Humanos de São Paulo (CDHSP), um órgão da prefeitura. Os relatórios produzidos pelo colegiado a respeito das vistorias em abrigos foram acessados em primeira mão pela reportagem, com relatos sobre a violação de diversos termos de compromisso e de direitos humanos básicos. Os documentos podem ser consultados aqui e aqui.

Um ano após as denúncias, ambas as organizações da sociedade civil (OSCs) investigadas continuam sendo contempladas com novos contratos milionários pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS).

Para especialistas consultados pela reportagem, os problemas são tanto de gestão dos órgãos públicos quanto das instituições contratadas, e impactam diretamente na capacidade dos moradores de rua de restabelecerem suas vidas.

Mais lidas do mês

Abrigo na Lapa paga R$ 150 mil por marmitas azedas e com ultraprocessados

Uma das instituições investigadas pela reportagem é o Centro Temporário de Acolhimento (CTA) 8 Lapa. Inaugurado em 30 de outubro de 2017, o projeto é um pavilhão branco amplo, sem janelas, próximo à subprefeitura da Lapa. 

Em fevereiro de 2023, a SMADS fechou contrato com a Associação Comunitária São Mateus (Ascom) para que assumisse a gestão do CTA 8 em abril de 2023. Para isso, receberia valores de R$ 374 a 465 mil por mês, direcionados para manutenção do programa, que, construído sob um pátio outrora usado como depósito de carros abandonados, demandava diversos ajustes.

Dentre eles, estava a instalação de telas no telhado para impedir a entrada de pombos, algo que a OSC alega ter instalado naquele mesmo mês. Porém, quando a Comissão Especial de Direitos Humanos de São Paulo fiscalizou o espaço, as aves já faziam dos telhados do CTA 8 seus novos lares — e do refeitório, seus banheiros.

“As fezes caem sobre as pessoas, a comida, as cadeiras, as mesas e o chão, afetando a higiene do ambiente e a qualidade das refeições”, afirma o relatório de 2024 da CDHSP.

Uma das condições do contrato era a instalação de grades para evitar a entrada de pombos, mas não foi isso o que aconteceu. Foto: Reprodução/ Relatório CTA 8 Lapa, da CDHSP

A sujeira logo atrai baratas e percevejos. Ali, entre pragas e fezes, os abrigados recebem cafés da manhã, almoços e jantares. As refeições, servidas em marmitex, são arroz, feijão e algum embutido ultraprocessado — steak de frango, linguiça, salsicha e hambúrguer de soja — que, muitas vezes, é servido congelado ou mal cozido, com um molho de tomate por cima para tapear. 

As paredes da cozinha, de material compensado, não suportam o calor de um fogão. Pelo menos, em tese. Contra todas as recomendações do projeto, existe uma cozinha própria no CTA 8, com fogão e micro-ondas, mas não é de acesso livre. Os funcionários utilizam esta estrutura disponível para fazer bolos, distribuindo exclusivamente entre si.

Segundo os relatos, os funcionários utilizam a cozinha para si, mas não permitem o uso para os moradores. Foto: Reprodução/ Relatório CTA 8 Lapa, da CDHSP

Sem micro-ondas, o gosto estranho nas “quentinhas” é normal. Muitas vezes, são servidos alimentos crus, estragados ou azedos. Caso os pássaros caguem na comida, só resta jogar fora: a equipe limita as marmitas a uma por pessoa, sem trocas.

As marmitas são fornecidas pelo Bar e Lanches Guiragos, uma micro-empresa localizada na Rua Conselheiro Furtado, na Liberdade. Nos últimos meses, a instituição recebeu R$ 155.068,20 da Ascom pelo fornecimento de almoços e jantares.

Não é só a comida que é racionada no CTA 8. De acordo com o relatório da CDHSP, até mesmo a água não é de livre acesso para os usuários do programa.

O gosto estranho nas quentinhas é o “normal”: comida estragada ou mal preparada é a tônica. Foto: Reprodução/ Relatório CTA 8 Lapa, da CDHSP

A instituição limita a quantidade e o horário de banho — das 6h às 7h40 e das 15h às 22h. Um por dia, por pessoa, com água fria, em duchas quebradas e sem boxes. No banheiro, um aviso discrimina: “mulheres trans devem tomar banho nos banheiros de pessoas com deficiência”.

Os banhos são a principal forma de se aliviar de um problema que existe desde o início do CTA 8: as pragas nos quartos. Muquiranas e percevejos mordem todos que tentam dormir nas beliches amontoadas lado a lado num espaço sem divisórias nem privacidade. Eles estão por todo o lugar — dos colchões finos e travesseiros puídos até o interior dos estrados dos beliches. Não há janelas ou saídas de ar, e há muitos ventiladores quebrados. Os que funcionam quase não fazem diferença, pois não têm potência o bastante para resfriar o local. Muitos moradores já tentaram matá-las, deixando marcas de sangue nas paredes.

Marcas nas paredes são o resultado de insetos mortos aos montes e de fezes e cuspe acumulados ao longo de meses. Foto: Reprodução/ Relatório CTA 8 Lapa, da CDHSP

Mesmo assim, quem opta por uma ducha no CTA 8 precisa ter estômago forte. Nos banheiros, as pias e os sanitários sem tampas, quebrados e sem água, acumulam o cheiro das necessidades que não desceram pela descarga desde a noite anterior — e que dão ânsia de vômito em qualquer um. 

Mesmo depois da limpeza, as paredes permanecem sujas de fezes e cuspe. Enquanto isso, sentados, os funcionários da limpeza conversam entre si ou usam o celular.

Apesar do controle rígido do consumo de água no estabelecimento, a parceria entre a Ascom e a SMADS deixa claro que as contas de água são completamente custeadas pelo município. Como se não bastasse, a SMADS selecionou o CTA 8 para fazer parte do programa Altas Temperaturas, em setembro de 2023, repassando R$ 30 mil para a aquisição de ventiladores, resfriadores, água e alimentos apropriados para a onda de calor. 

Em fevereiro de 2024, a Ascom também foi selecionada em um contrato de R$ 3 milhões por mês para operar um novo programa, sob regime emergencial, com mil vagas para moradores de rua.

Questionada sobre as políticas de administração de água e alimentação, a Ascom não retornou até o momento.

Pais e crianças adoeciam após comerem marmitas em Hotel Social

Outro projeto com irregularidades investigado pela reportagem é o Centro de Acolhida Especial (CAE) Família Central Plaza. Contratado em 24 de maio de 2022, é um hotel no bairro Bela Vista, alugado pela própria SMADS, que teve 11 de seus 13 andares adaptados para receber famílias encaminhadas pela Supervisão de Assistência Social (SAS) da Sé.

No contrato, o hotel — de propriedade da empresa Origens Administração de Bens Próprios — receberia repasses para fornecer quartos, alimentação e bens de higiene para os participantes do programa. Enquanto isso, a OSC Associação Beneficente Caminhos de Luz (Abecal) ficaria responsável por cursos de capacitação, reinserção no mercado de trabalho e outras atividades integrativas.

Ao todo, a parceria custava R$1.233.317,95 por mês para os cofres públicos de São Paulo — R$ 221 mil para a organização e R$ 1,012 milhão para o hotel. 

No entanto, os moradores do Central Plaza denunciam problemas com a alimentação do local desde 2023. As marmitas, fornecidas através da Stew Alimentos, uma empresa de catering, eram alvo constante de conflito com a gestão do hotel. Em uma série de reclamações à SMADS, apontaram que as refeições fornecidas são servidas cruas, de cheiro muito forte, ou até mesmo estragadas, com alguns usuários relatando terem encontrado larvas no feijão. 

O “macarrão com molho vermelho” é um dos pratos servidos no Hotel Família Central Plaza, e que têm custado milhões em dinheiro público. Foto: Reprodução/ Prefeitura de São Paulo

“O peixe servido de sexta-feira cheira muito forte e poucas pessoas conseguem comer”, relata o documento. “Os usuários trouxeram uma marmita que fora ofertada sopa, alegam o excesso de gordura.”

Os usuários do Central Plaza que encaram o prato servido dizem que se “sentem comendo veneno”. Na denúncia, afirmam que ao menos quatro pessoas já tiveram intoxicação alimentar e dizem ser em decorrência da comida. 

A situação não poupou nem os filhos dos moradores. O café da manhã era servido por funcionários da portaria e da limpeza, que não usavam equipamentos de segurança nem higiene. As refeições não incluem frutas — são apenas bolacha maizena e leite, que frequentemente era servido aguado ou azedo. 

“(…) O problema tem se agravado a tal ponto que falta chocolate para as crianças no café da manhã e no lanche da noite”, relata um dos moradores por email. “Quando o chocolate é disponibilizado, colocam apenas meia colher pequena em cada copo, o que é insuficiente para atingir o nível mínimo de vitaminas descrito na tabela nutricional para as crianças e adolescentes.”

“Declaro que após a refeição de ontem à noite eu e a minha esposa, e mais a minha filha, passamos mal”. Foto: Reprodução/ Prefeitura de São Paulo

Segundo o relatório da CDHSP de 2024, as marmitas do programa também abundam em ultraprocessados — como salsicha e steak de frango — e têm predominância de ovo e frango. “Os conviventes são impedidos de consumir mais proteína caso não terminem todo o carboidrato do prato, sendo que a proteína restante é entregue aos membros da equipe”, aponta o documento.

Em 2024, ambas as denúncias levaram à abertura de um processo contra a Origens Administração, bem como ao encerramento do CAEF Central Plaza. 

Assine a Sexta Básica,
nossa newsletter gratuita e semanal

Instituições não seguem cartilha básica de alimentação saudável exigida pela SMADS

Ambos os projetos sociais investigados quebravam cláusulas de contrato que estipularam normas para uma alimentação saudável. 

Uma vez fechando acordo com a SMADS, as instituições se comprometem a seguir o Manual Prático para uma Alimentação Saudável, uma cartilha com diretrizes para refeições que atendam ao conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Dentre estas regras estão a seleção de alimentos saudáveis, que supram as necessidades nutricionais das pessoas, e não simplesmente saciar a fome. A diretriz, porém, tem falhas, como a recomendação da inclusão de salsichas na dieta.

Para Carolina Moreno, advogada especialista em terceiro setor, o próprio cenário apresenta problemas tanto pela gestão pública quanto pelas instituições terceirizadas. “Para além das questões técnicas, eles não cumprem esse objetivo social de dar estrutura para que a pessoa consiga se restabelecer socialmente, e ter condições dignas de conduzir a própria vida. Isso reforça o ciclo de violência que elas passam em várias instituições dentro das estruturas de poder da cidade. Elas continuam sendo revitimizadas”, conta à reportagem.

São Paulo já é conhecida por ter a maior população de rua do Brasil — cerca de 60 mil pessoas, segundo a SMADS, embora estimativas do Observatório de Políticas Públicas para a População de Rua apontem 90 mil pessoas.

São Paulo também é a cidade com a maior rede socioassistencial da América Latina. São 27 mil vagas distribuídas entre 379 serviços de acolhimento, dentre hotéis, albergues, vilas reencontro e demais projetos. 

Nos últimos cinco anos, esta infraestrutura custou de R$ 1,5 a 2 bilhões aos cofres públicos da cidade por ano, com o único objetivo de tirar as pessoas da rua. 

Em 2023, somente 9.992 pessoas conseguiram sair.

Artigod Prefeitura de SP paga milhões a projetos que servem comida estragada e entre fezes de pombo à população de rua  publicado em O Joio e O Trigo.

​Reportagens – O Joio e O Trigo Leer más 

Scroll al inicio