A saúde mental de funcionários se deteriora enquanto lojas de conveniência se expandem por São Paulo
Já passava das 9 da noite do dia 1º julho de 2024, uma segunda-feira, quando uma funcionária do departamento de Recursos Humanos (RH) da rede de lojas de conveniência OXXO enviou um e-mail sobre um assunto que ela julgava essencial para o bem-estar dos trabalhadores da empresa. Maria* tinha sido procurada por um dos atendentes de uma loja da Consolação, no centro de São Paulo, que estava tendo crises de ansiedade durante o trabalho.
O atendente atuava em quatro lojas diferentes, um rodízio comum aos trabalhadores iniciantes da OXXO. Mas ele não estava conseguindo se adaptar ao revezamento por ter limitações de locomoção. Na mensagem enviada aos responsáveis do departamento jurídico, da medicina do trabalho e das operações da OXXO, Maria detalhou assim a situação do funcionário, uma pessoa com deficiência:
“[Ele] é pessoa com deficiência adquirida (decorrente de acidente de moto), limitação nos dedos da mão direita, cego do olho esquerdo, limitação na marcha e placa de metal no crânio. Informou que diante das alterações de lojas não se adaptou, teve crise de ansiedade, transtorno de humor, pressão alta e atritos com alguns colegas, segundo ele devido à forma ríspida como foi tratado quando externou a questão de saúde.”
Maria pediu que o trabalhador fosse fixado em uma única loja, de preferência perto de sua casa. No texto, a especialista em RH escreveu que a medida poderia ser “um ‘case’ (oportunidade) para explorarmos e aperfeiçoamos a questão da inclusão de pessoas com deficiência na companhia”.
“Concordo com você”, respondeu o chefe do Jurídico no dia seguinte. “Mas a decisão de onde alocá-lo fica com o time de operações. Considerando as limitações físicas do colaborador, minha única orientação é de que ele seja alocado em um lugar ‘definitivo’.”
A funcionária de RH não previu a decisão do setor de Operações, responsável pela administração direta das lojas. Ela chegaria um dia depois também por e-mail. “Vamos discutir. Entendo as necessidades, mas abrir um precedente de transferência forçada me parece perigoso”, afirmou o chefe do setor.
Maria ficou indignada que o pedido do trabalhador com deficiência tenha sido definido como “transferência forçada”. O empregado, pessoa com deficiência, não foi fixado e acabou não conseguindo se adaptar ao rodízio imposto pela OXXO. Ele deixou a empresa algumas semanas depois. O episódio foi a gota que faltava para fazer transbordar o estresse que vinha afetando a própria Maria desde que ela tinha sido contratada como consultora de recursos humanos, um mês antes.
Cobranças desproporcionais e públicas em reuniões na “sala de guerra” montada na sede da empresa também contribuíram para a deterioração da saúde mental da consultora, assim como piadas e insinuações de cunho sexual feitas por um dos chefes: “Um dia ele disse que um homem de barriga cheia e saco vazio não quer guerra com ninguém. A gente ouvia essas coisas e não podia falar nada.”
A ‘sala de guerra’, um conceito emprestado do universo militar, se transformou em uma estratégia de gestão no mundo corporativo. Em teoria, seria um local e um momento em que os gestores se reuniriam para focar na resolução rápida e eficiente de um problema. Mas a tal sala de guerra da OXXO, segundo funcionários que participaram dela, se tornou o ambiente ideal para assédio moral, humilhação e constrangimento.
As cobranças públicas e individuais por mais desempenho eram frequentes, o que levava à exposição de funcionários diante de toda a sua equipe e entre equipes de outros setores. Um dos diretores dizia ter formação militar e adotava vocabulário beligerante para se referir a outros gestores. Quando, por exemplo, esse diretor soube que uma colega do RH estava desenhando uma estratégia para diminuir a taxa de demissões na empresa, ele mostrou sua discordância na sala de guerra: “Ele disse: ‘Eu vou me estapear com ela. Ela não vai ficar em pé na minha frente’. Era sempre um tom áspero, pra dizer o mínimo”, lembra Maria.
Diante desse cenário, Maria desenvolveu sintomas de burnout, uma síndrome que leva ao esgotamento físico e mental decorrente do trabalho, e teve recomendação médica para se afastar. Enquanto estava afastada, recebeu por WhatsApp a notícia de que tinha sido demitida.
A situação da funcionária não é incomum na OXXO, cuja operação brasileira é uma parceria de duas multinacionais, a mexicana Femsa e a brasileira Raízen, gigante do agronegócio e do setor de combustíveis. Maior rede de conveniência do México, a OXXO tem se expandido rapidamente no Brasil e mudado a paisagem urbana de cidades do estado de São Paulo. Hoje, segundo a empresa, já existem mais de 500 lojas no estado.
De acordo com o Sindicato de Comerciários de São Paulo, a empresa é uma das maiores empregadoras da cidade. A rede adotou uma estratégia agressiva de expansão, com centenas de lojas de rua funcionando em horários estendidos e prometendo conveniência e pão quentinho aos clientes. Mas a OXXO leva praticidade aos consumidores cobrando um custo alto aos trabalhadores.
A reportagem conversou com outros três ex-funcionários do RH que também foram afastados por problemas de saúde mental, fruto do ambiente de trabalho. “Todos no escritório estão doentes”, disse uma delas, que foi demitida após voltar do afastamento e preferiu não ser identificada nesta reportagem. “Ninguém leva a sério a questão da saúde mental dos colaboradores. Pelo contrário, isso é até motivo de piada”, afirmou outra, que faz tratamento até hoje.
O Joio enviou à OXXO nove perguntas a respeito de assuntos tratados nesta reportagem. A empresa afirmou que tem um “compromisso inegociável com os valores de respeito, diversidade e segurança para todos os mais de 4 mil colaboradores” e que “qualquer forma de assédio ou prática que comprometa a saúde e segurança no ambiente de trabalho é condenada pela empresa”.
A OXXO também disse que todos os casos apresentados na reportagem “são relevantes para a nossa organização e estão sendo avaliados e tratados com a devida atenção, de forma individualizada, ou seja, estamos em contato com cada um dos envolvidos para apuração dos fatos”.
Protocolo falho
Quando um funcionário da rede comunica ao chefe que precisa de ajuda psicológica, a orientação dada é que ele procure uma clínica especializada por telefone.
Foi o que fez a atendente Brenda Marques que, após ser vítima de três assaltos seguidos em uma loja em Santo André, na grande São Paulo, e sofrer uma convulsão, escreveu ao chefe por WhatsApp: “Minha mente está extremamente afetada, estou muito mal mesmo.” Mas ao entrar em contato com a clínica Vida Plena, Brenda ouviu que seu nome não constava entre os funcionários da OXXO e, portanto, não poderia ser atendida.
Com um salário de R$1.919,94, ela não teve condição de pagar por um psicólogo e precisou lidar sozinha com o trauma dos assaltos violentos. “Eu sou cardíaca e passei muito mal”, disse a ex-funcionária em entrevista por telefone. Além da falta de apoio psicológico, a empresa não prestou auxílio quando os assaltos ocorreram, diz: “Eles [OXXO] omitiram socorro, falaram que ligaram pra polícia, mas ninguém apareceu. Minha mãe teve que ir até lá e me levar pro hospital. Passei meu aniversário acamada, com medo de alguém entrar na minha casa.”
Desamparada, Brenda acabou pedindo demissão. Aos 21 anos, tenta um novo emprego e “se vira” fazendo serviços de beleza. “Até hoje tenho crise de ansiedade”, conta. “Tem dias que é difícil levantar da cama. Hoje em dia meu psicológico é 50%, às vezes baixa pra 20%.” Ela processou a OXXO, alegando que se sentiu obrigada a pedir demissão já que a empresa não proporcionou um ambiente de trabalho seguro.
Na ação, a OXXO se defendeu, afirmando que “tomou todas as providências possíveis para apoiar a reclamante [Brenda] na situação que estava acontecendo, entretanto, nenhuma das soluções apresentadas foram aceitas pela reclamante.” Segundo os advogados da empresa, o “o que se vê na verdade, é que a reclamante não mais quis manter a relação de emprego, pediu demissão e se arrependeu, não podendo agora se valer do judiciário para reverter situação causada por ela mesma”.
No dia 30 de agosto de 2024, a juíza Gláucia Regina Teixeira da Silva deu razão a Brenda e decidiu que a empresa terá que pagar verbas rescisórias e indenização por danos morais à antiga funcionária.
“Em que pesem as responsabilidades da reclamada [OXXO], de prover um meio ambiente laboral seguro e digno à reclamante e de salvaguardar a integridade física e psicológica da obreira [Brenda], não foram produzidas provas no sentido de que a empresa adotou medidas preventivas eficazes de segurança, o que torna cristalina a negligência da ré em face do infortúnio sofrido pela autora”, escreveu a magistrada na sentença. Cabe recurso à decisão.
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“Essa empresa acabou com a minha vida”
Foi com essa frase que Rafael Navarro respondeu ao pedido de entrevista sobre o período de dez meses em que ele atuou como atendente da loja da Rua Rego Freitas, na República, no centro de São Paulo. Como funcionam 24h, têm poucos funcionários e não têm equipe de segurança fixa, as lojas do centro paulistano acabam sendo muito visadas por criminosos.
Quando um assalto acontece, a empresa orienta que o funcionário ligue para um serviço terceirizado de ronda motorizada. Mas quando esse segurança chega, em geral se passou muito tempo desde o assalto e pouco pode ser feito.
Tivemos acesso ao contrato que a OXXO assinou em 2022 com a empresa Fast Meniya, que presta serviço de segurança em suas lojas. A OXXO é uma marca da Rede Integrada de Lojas de Conveniência e Proximidade, cujo nome fantasia é Grupo Nós, que por sua vez pertence à Raízen e à Femsa.
Naquela altura, a rede já tinha mais de cem unidades na capital paulista e no interior. Mas o contrato previa que a segurança dessas lojas seria feita por apenas 29 terceirizados, sendo que 11 deles seriam auxiliares administrativos para atender ligações telefônicas. E apenas sete trabalhariam em motos para proteger as lojas.
Perguntamos à OXXO se esse contrato ainda está válido ou se houve a admissão de mais seguranças, mas a empresa não respondeu.
Muitas vezes tendo que administrar a loja sozinho, Rafael presenciou dezenas de assaltos, furtos e arrastões, mesmo no turno da manhã. Em um deles, filmado pelo celular de um dos funcionários, o criminoso ameaça a equipe com uma faca. O atendente pediu então que a rede contratasse um segurança fixo para coibir os assaltos, mas ouviu que isso não aconteceria por contenção de custos.
“Eu trabalhava das 6h às 14h20 e nesse intervalo eram três ou quatro roubos por dia”, conta ele, cuja única reação era comunicar a empresa e chamar a polícia. “Até que um dia a própria polícia disse que eles tinham mais o que fazer, que eles não trabalhavam só pra OXXO.”
Rafael chegou a fazer denúncias no canal de ética da companhia, mas elas não deram em nada. A frequência dos episódios violentos e a falta de apoio institucional levaram o atendente a desenvolver crises de ansiedade e de pânico, insônia e medo de trabalhar: “Eu andava tremendo na rua, achava que qualquer pessoa ia me assaltar.”
Por orientação médica, o funcionário foi afastado por três meses. Quando voltou a trabalhar, voltaram também as crises. Para piorar, a OXXO parou de depositar seu vale-transporte, e ele precisou tirar do próprio bolso o custo dos bilhetes. Uma semana após o retorno, Rafael resolveu pedir as contas. “Eles não estão nem aí pra saúde do funcionário. Quando fui afastado, ninguém me ligou pra saber como eu tava”, relembra ele, que fez tratamento psicológico e psiquiátrico e hoje trabalha em outra empresa.
Questionada sobre Rafael, a OXXO disse que não poderia comentar casos específicos.
Quando um assalto acontece, a empresa orienta que o funcionário ligue para um serviço de ronda motorizada. Foto: João Ambrósio
Processos trabalhistas revelam ataques à saúde mental
Nas páginas das centenas de processos movidos contra a OXXO nos últimos anos, trabalhadores pedem indenização por danos morais por alegadamente terem desenvolvido doenças e condições mentais na empresa. Muitos casos são consequência da insegurança a que são submetidos nas lojas, mas outros revelam diferentes irregularidades.
Há o caso, por exemplo, de uma atendente de 21 anos que teve ansiedade e queda de cabelo enquanto sofria assédio moral de uma chefe, que a acusava de furtos aos caixas da loja. Acusação injusta de furto e assédio moral são o centro da denúncia de outra atendente, de 26 anos. Uma terceira relata ter sido vítima de homofobia de uma supervisora. Já Paola Bildes, de 18 anos, processa a empresa por ter sido demitida após avisar que estava grávida, prática proibida pela Constituição. Ela também conta que se sentiu humilhada ao ser repreendida aos berros por uma supervisora no meio da loja.
“A empresa é extremamente negligente, não tem a menor responsabilidade com a saúde mental do trabalhador”, afirma a advogada trabalhista Marta de Santis Trindade, que defende as ex-funcionárias Brenda Gomes e Paola Bildes. “Não sei se é por ser uma empresa nova ou por ter um viés de outro país, mas pode ser que eles não estejam acostumados com a legislação trabalhista [do Brasil]. Demitir funcionária grávida é estranho. As empresas geralmente não fazem isso, porque vão ter que pagar [os direitos trabalhistas] duas vezes.”
De acordo com os especialistas em RH que frequentaram as ‘salas de guerra’ onde os diretores da OXXO tratam da situação dos funcionários, a eventualidade de sofrer processos trabalhistas ganhou um nome: “risco calculado”.
Uma das ex-funcionárias do RH afirma que a empresa sabe que o ambiente corporativo e operacional é “tóxico” e inseguro, mas acredita que isso faz parte de seu modelo de negócio e está dentro da sua estratégia de expansão. Esse ambiente de pressão e assédio sobre os funcionários geraria mais resultados, que compensariam eventuais perdas com processos e com os custos trabalhistas das demissões.
Segundo um dos trabalhadores do RH, no cálculo do risco trabalhista entraria também o descumprimento da lei que reserva vagas para pessoas com deficiência e para aprendizes.
O Ministério Público do Trabalho conduz duas investigações para apurar denúncias de que a OXXO estaria descumprindo a lei de cotas para PCD e a lei da aprendizagem. O Joio pediu para ver os documentos, mas os promotores não permitiram alegando risco às apurações.
Veja a íntegra da nota que a OXXO enviou ao JOIO
O OXXO reafirma seu compromisso inegociável com os valores de respeito, diversidade e segurança para todos os mais de 4 mil colaboradores. Qualquer forma de assédio ou prática que comprometa a saúde e segurança no ambiente de trabalho é condenada pela empresa, que segue as leis e normas do país, além de adotar as práticas e padrões para garantir um ambiente seguro e saudável.
Cientes dos desafios presentes na sociedade, buscamos continuamente estratégias e ações focadas na segurança de nossas lojas. Para assegurar que nossos colaboradores se sintam protegidos, implementamos medidas como Centro de Monitoramento em todas as unidades, além de dezenas de veículos para rondas de segurança, contemplando todas as regiões de atuação das mais de 500 unidades. Além disso, mantemos parcerias com órgãos públicos e instituições estaduais para promover um ambiente mais seguro para colaboradores, clientes e comunidade. Pensando nos colaboradores, a rede conta um Programa de Apoio Psicológico disponível 24h.
Sobre os casos mencionados pela reportagem, informamos que todos são relevantes para a nossa organização e estão sendo avaliados e tratados com a devida atenção, de forma individualizada, ou seja, estamos em contato com cada um dos envolvidos para apuração dos fatos. Por questões de confidencialidade, não podemos fornecer detalhes específicos.
A empresa reforça o comprometimento com o respeito aos nossos colaboradores, clientes e comunidade.
*O nome da funcionária foi modificado para preservar sua identidade.
Artigod Ex-empregados da OXXO relatam <i>burnout</i> e assédio moral em ‘sala de guerra’ publicado em O Joio e O Trigo.
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