Organização propõe decreto para coibir “mentira verde” no Brasil

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Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) articula regulamentação para combater greenwashing e garantir transparência ambiental

“É proibida toda publicidade enganosa e abusiva”, determina o Código de Defesa do Consumidor (CDC). No entanto, quando empresas criam uma falsa aparência de sustentabilidade em seus produtos ou embalagens, a regra parece ter exceções. Contra essa violação de direitos, o Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) propõe novas diretrizes para barrar a chamada “propaganda verde” — a tática de manipular credenciais ecológicas para fazer mais dinheiro.

O Joio teve acesso à minuta do decreto. A proposta prevê fiscalização rigorosa, critérios objetivos para identificar discursos fraudulentos e sanções para quem enganar o público. Também exige que fornecedores sejam transparentes sobre os impactos de suas atividades, assegurando ao consumidor uma escolha informada.

Segundo Julia Catão Dias, coordenadora do programa de Consumo Sustentável do Idec, o documento ainda não tem data para ser apresentado à Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon).

A iniciativa surge no mesmo ano em que o estado do Pará se prepara para receber a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30), a ser realizada em Belém, entre os dias 10 e 21 de novembro.

“Com os olhos do mundo voltados para o Brasil, temos a chance de aprovar um decreto que atinge o coração de um problema grave: a desinformação.”

Atualmente, não há uma lei específica que proíba a prática no país. O papo furado corre solto. Mas existem mecanismos legais para contestá-lo. Ações suspeitas podem ser enquadradas em dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, como o próprio Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Por que, então, fortalecer os mecanismos de controle? Hoje, a responsabilização depende de análises individuais, sujeitas a interpretações distintas. Isso enfraquece o monitoramento, além de prolongar disputas jurídicas. A definição de critérios objetivos, por outro lado, padroniza a aplicação da lei, reduz ambiguidades e previne práticas enganosas antes de atingirem o consumidor.

Num segundo momento, outras instâncias de fiscalização poderiam atuar em parceria com organizações da sociedade civil. “O ideal seria criar um observatório de greenwashing. Um espaço onde consumidores pudessem denunciar, nossa equipe jurídica encaminharia os casos aos órgãos competentes e, ao mesmo tempo, funcionaria como um repositório de conhecimento e articulação para fortalecer o combate a essa prática”, explica Dias.

Experiência latina

Em 2014, a Colômbia aprovou o Decreto 1369, que regulamenta o Código de Proteção ao Consumidor em relação ao uso enganoso ou abusivo de publicidade socioambiental.

A norma exige que os fornecedores de bens e serviços comprovem alegações e que as informações sejam completas, verdadeiras, transparentes, oportunas, verificáveis e atualizadas. Também determina que sejam compreensíveis, precisas e idôneas, sem dados relevantes que possam induzir os consumidores ao erro.

Mais recentemente, é o Chile que se destaca por suas iniciativas contra o greenwashing. Uma das principais ações é a proposta de um projeto de lei, que serviu de inspiração para o decreto do Idec.

O texto traz definições para ajudar a distinguir as várias faces da mentira verde. Também prevê sanções como multa, proibição de publicidade por prazos de 1 a 5 anos e responsabilização dos meios de comunicação que façam publicidade de empresas que tenham sido condenadas por danos ambientais.

O PL, em tramitação no Senado, exige que empresas que vendem sustentabilidade forneçam informações completas. Caso contrário, estarão sujeitas a penalidades. As empresas também seriam obrigadas a manter informações atualizadas, em seus sites, sobre práticas ambientais.

Em 2023, a Fundação Basura (basura significa lixo, em castelhano) publicou um documento para orientar países na criação de legislações semelhantes à adotada no Chile. 

A Fundación Basura apresentou em 2023 uma base de projetos de lei sobre greenwashing que pode ser utilizada em diferentes países da América Latina (Imagem: reprodução)

Esforços em andamento

Para mobilizar a sociedade em torno do tema, o Idec lançou um manifesto pela regulamentação da proibição do greenwashing no Brasil. A iniciativa reúne organizações da sociedade civil e especialistas para pressionar o governo a estabelecer regras mais explícitas contra essa prática.

A preocupação central do manifesto é que, embora o Código de Defesa do Consumidor (CDC) já desautorize a propaganda enganosa e abusiva, não há uma regulamentação específica para definir e punir ambientalismo corporativo.

Como resultado, termos vagos, selos ambientais sem auditoria e discursos genéricos continuam a confundir consumidores. Isso torna ainda mais difícil diferenciar compromissos reais de meras estratégias de marketing

O documento denuncia como essa prática manipula o público e sufoca negócios genuinamente sustentáveis, enquanto multinacionais lucram sem fazer mudanças reais em suas cadeias de produção.

No dia primeiro de abril de 2024, o Idec já havia lançado um livro eletrônico para desenredar esses nós. O manual detalha os tipos de greenwashing, ensina a identificar as principais estratégias utilizadas pelas empresas, apresenta a legislação vigente no Brasil e traz um panorama global sobre o tema.

Ao fim, disponibiliza um modelo de carta para quem quer cobrar das empresas provas e explicações sobre suas promessas ambientais. A ideia é fortalecer a pressão pública, exigindo compromisso real com as bases da prosperidade humana.

Se a resposta for insuficiente ou nem sequer vier, o documento pode servir de base para reclamações formais em órgãos de defesa do consumidor e, em último caso, até ações judiciais. O Idec disponibiliza uma série de modelos de cartas e petições prontas para enviar a empresas e governos.

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De olho nas balelas

Um rótulo cheio de selos verdes, uma promessa vaga de “carbono neutro”, uma empresa que se diz sustentável, mas não explica como? Se parece bom demais para ser verdade, pode ser greenwashing corporativo — e o consumidor tem o direito de questionar.

Desconfiado das promessas dos chamados plásticos biodegradáveis, o Idec encomendou uma pesquisa ao professor Ítalo Braga de Castro, do Instituto do Mar, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

O relatório expõe uma grande farsa: “Nenhum dos produtos que alegaram biodegradabilidade eram, de fato, biodegradáveis, uma vez que as normas que atestam tal condição não a garantem verdadeiramente.”

O que as empresas vendem como alternativa sustentável são, na realidade, plásticos oxidegradáveis. Isso significa que, em vez de se decompor naturalmente, esses materiais recebem aditivos químicos que supostamente aceleram sua degradação em água, metano, gás carbônico e biomassa.

O problema? As normas técnicas que atestam essa degradação consideram condições de temperatura e umidade altamente controladas — cenários típicos de laboratório, não do mundo real.

Na prática, não há garantia de que esses plásticos se desintegram como prometido quando descartados no meio ambiente. O “biodegradável”, ao que tudo indica, pode ser apenas mais um rótulo enganoso.

Aberrações que o decreto pode dar cabo

Quem lembra da sandalinha da Xuxa com relógio do boto-rosa? Em julho de 2010, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) abriu uma representação contra a Grendene por conta de um comercial de gosto duvidoso.

Em meio a uma explosão de cores, animais saltitantes e crianças sorridentes, a floresta animada do filme publicitário da agência W/Brasil para a fabricante de calçados parecia saída de um conto de fadas.

Com um entusiasmo calculado, a Rainha dos Baixinhos abre os braços e dispara: “Vem que está na hora de cuidar da natureza!” No auge da fantasia, meninas calçam a sandália, colocam seus relógios no pulso e, por fim, ganham asas de borboleta. Como se encher o armário de plástico fosse a nova forma de salvar o planeta.

Esse caso pode parecer trivial, mas expõe uma disputa simbólica pelo controle do imaginário ambiental. Quando as narrativas do “desenvolvimento sustentável” se consolidam, a ecologia deixa de ser um conceito baseado em critérios científicos e sociais para se tornar um discurso esvaziado, moldado pelas próprias corporações. Basta olhar para a estratégia climática da JBS para Net Zero, ou seja, para atingir o estado ideal em que a quantidade de gases emitida é igual à removida.

Em 2021, a JBS anunciou seu “compromisso” de zerar as emissões líquidas até 2040 e eliminar o desmatamento ilegal em sua cadeia de suprimentos. No entanto, em janeiro deste ano, após a posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, Jason Weller, diretor Global de Sustentabilidade da empresa, afirmou que essa meta era uma “aspiração”. Não era uma promessa concreta.

Legenda: A JBS, que havia prometido se tornar uma empresa zerada em emissões, agora diz que a meta é apenas uma “aspiração” (Imagem: reprodução do site da JBS)

Por aqui, o Banco do Brasil também se equilibra em uma ginástica argumentativa curiosa. No início do ano, foi eleito, pela sexta vez, o banco mais sustentável do mundo pelo ranking Global 100, da consultoria canadense Corporate Knights — um selo exibido a torto e a direito em suas comunicações.

Apesar de ostentar esse título, a instituição liberou mais de R$ 10 milhões em crédito rural para um fazendeiro acusado de desmatamento químico no Pantanal mato-grossense, como revelou o Greenpeace Brasil. O fazendeiro teria usado 25 agrotóxicos diferentes para transformar a área em pastagem para gado.

No papel, o Banco do Brasil acumula prêmios de sustentabilidade, mas, na prática, a empresa concede crédito a desmatadores (Imagem: perfil do Banco do Brasil no Facebook)

Desde 2019, Claudecy Oliveira Lemes, de 52 anos, tem 15 autuações por danos ambientais no bioma. O pecuarista já recebeu multas da Secretaria de Estado do Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA-MT) que somam R$ 5,2 bilhões.

Para Érico Pagotto, psicólogo, professor, ambientalista e autor do livro Greenwashing: manual da propaganda enganosa, a responsabilidade social corporativa (RSC) se tornou um campo aberto para a engabelação. Faz parte de uma tendência na qual o reconhecimento da importância da sustentabilidade se torna um substituto aceitável para a verdadeira preservação da natureza. “É preciso reduzir a produção excessiva de bens, independentemente de serem rotulados como sustentáveis ou não. Muitos dos limites essenciais para a saúde planetária já foram ultrapassados. Não dá para tapar o sol com a peneira”, alerta.

Outro exemplo que o decreto pode ajudar a regular, prevenir e punir está na Shell Brasil, patrocinadora master do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), referência para a pesquisa científica e conservação da biodiversidade. Em março de 2024, a petroleira inaugurou ali um novo espaço cultural: o Museu do Jardim Botânico. Um presente cuidadosamente embalado para cariocas e turistas.

Esse tipo de iniciativa, por mais que pareça louvável, é antes de tudo uma jogada estratégica. O intuito é desviar a atenção dos problemas ambientais provocados pelo modo de produção capitalista. Apoiar projetos de preservação não passa de um truque conveniente para tirar o foco daquilo que realmente move o negócio.

A Shell, uma das maiores petrolíferas do mundo, viu no Jardim Botânico do Rio de Janeiro a chance de impulsionar uma aura verde para seus negócios (Imagem: campanha da Shell veiculada no Facebook)

Fato é que o negacionismo climático não desapareceu — apenas se sofisticou. As corporações não negam mais a crise, mas convertem a urgência ambiental em uma peça publicitária. Se apresentam como parte da solução, enquanto seguem explorando recursos, adiando mudanças reais e transferindo a responsabilidade para o consumidor.

Essa abordagem é ainda mais insidiosa: ao projetar uma falsa sensação de progresso, ela desmobiliza esforços que poderiam nos aproximar de um futuro com justiça climática. Enquanto isso, o tempo para uma resposta efetiva continua se esgotando.

O cinismo da corresponsabilização

Corta para o início do ano. No dia 23 de janeiro, o Idec acionou a Justiça contra a Gol Linhas Aéreas e a Localiza, questionando suas promessas de compensação de carbono. As interpelações judiciais, protocoladas no Tribunal de Justiça de São Paulo, acusam ambas as empresas de lucrar com a venda desse serviço sem comprovar que os projetos utilizados são reais.

Por que o crédito de carbono pode ser um problema?

O crédito de carbono permite que empresas e países paguem para compensar suas emissões de CO2, em vez de reduzi-las. O dinheiro, em tese, financia energia renovável e preservação ambiental.

Na prática, o sistema pode favorecer grandes poluidores, que compram créditos como alternativa barata ao corte real das emissões. Estudos indicam que essas compensações raramente entregam o benefício climático prometido, tornando-se uma licença para continuar poluindo.

No caso da Gol, o programa analisado foi o #MeuVooCompensa, lançado em 2021. Segundo uma pesquisa do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), a aviação é responsável por 70% da emissão de gases de efeito estufa. No entanto, como a própria Gol diz em seu último Relatório de Sustentabilidade, ela adota uma “estratégia de corresponsabilidade” para enfrentar o problema — um eufemismo para dividir a conta com os passageiros.

A campanha da Gol baseada em promessas vagas resultou em uma ação movida pelo Idec (Foto: Nereu Jr./Divulgação GOL)A campanha da Gol baseada em promessas vagas resultou em uma ação movida pelo Idec (Divulgação GOL)

Mais uma coisa: os projetos de compensação implementados pela companhia estão diretamente ligados a uma parceria com a Moss, que se descreve como uma empresa de tecnologia financeira (fintech) ambiental. O problema é que a Moss está envolvida na comercialização de créditos de carbono oriundos de projetos suspensos pela Operação Greenwashing da Polícia Federal.

Segundo Érico Pagotto, a maioria das empresas evita mudanças estruturais porque isso significa mudar todo o seu modelo de negócios. Em vez disso, investem em ações pontuais que, na prática, acobertam processos insustentáveis que seguem intocados. “Costumo brincar que o greenwashing é um ‘polimorfo perverso’. Está sempre mudando de forma para evitar regulações e continuar enganando o público”, acrescenta.

E a oferta da locadora de carros Localiza? Por apenas R$ 1,99 por dia para contratos diários ou R$ 0,99 por dia para contratos mensais, o cliente aluga um automóvel e “zera” sua pegada de carbono. Parece um negócio impecável — econômico, prático, quase altruísta. Mas um olhar mais atento é suficiente para fazer a promessa ruir.

O instituto questiona por que a Localiza cobra uma taxa fixa de compensação de carbono, sem levar em conta a quilometragem percorrida. Afinal, quanto mais o carro roda, mais CO2 libera na atmosfera. Praticar o mesmo valor, portanto, significaria desprezar o impacto real de cada viagem.

Além disso, o cálculo teria desconsiderado outras variáveis importantes, como o modelo do veículo, o tipo de combustível utilizado, a eficiência energética do motor e até mesmo as condições de uso.

O problema do greenwashing, explica Pagotto, não é apenas o exagero ou a falta de transparência. O ponto central é como a prática inflaciona o peso das ações individuais. “O cliente, ao pagar esse valor, acredita estar fazendo sua parte na luta contra a crise climática. Mas, na prática, pode estar apenas subsidiando custos que deveriam recair sobre a própria companhia”, explica.

Artigod Organização propõe decreto para coibir “mentira verde” no Brasil publicado em O Joio e O Trigo.

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