Na defesa de interesses próprios, senadores alteram o texto da reforma tributária para favorecer as indústrias de refrigerantes. Câmara vota esta semana projeto de lei
Em 1985, a banda de rock brasiliense Legião Urbana gravou a música Geração Coca-Cola, com letra do seu cantor e principal compositor, Renato Russo. Era uma referência à geração que havia crescido durante o período da ditadura cívico-militar, que seria então o “futuro da nação”. “Desde pequenos nós comemos lixo, comercial e industrial, mas agora chegou nossa vez, vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”, cantavam.
Quase 40 anos depois, na mesma Brasília, dois senadores nascidos na mesma época que o cantor trabalharam por mudanças na reforma tributária para perpetuar para as futuras gerações os problemas alimentares de hoje – notadamente, o consumo de ultraprocessados como refrigerantes, biscoitos e salgadinhos. Mais do que convicções, as alterações atendem a interesses diretos, até mesmo explícitos dos parlamentares.
Agora, o texto, que já tinha vindo da Câmara, volta aos deputados federais, que podem aprovar da maneira como está ou retomar o texto anterior. Há uma expectativa que a apreciação seja ainda nesta semana, a última antes do recesso do Legislativo. O último passo é a sanção ou o veto presidencial.
Para os alimentos e bebidas, a reforma tributária está dividida em dois vetores: a redução das alíquotas em determinados produtos, como alimentos e gêneros de primeira necessidade; e o aumento para reduzir o consumo de substâncias que sejam prejudiciais à saúde por meio do imposto seletivo.
O primeiro tem como objetivo facilitar o acesso das pessoas, em especial de baixa renda, aos alimentos que compõem a cesta básica, por exemplo. É pensada também uma forma de reduzir a desigualdade social do sistema tributário, que hoje faz com que os pobres paguem percentualmente mais impostos do que os ricos, em razão da concentração da carga em gêneros de primeira necessidade.
Desta forma, os alimentos da cesta básica receberam isenção total de impostos. A lista inclui principalmente produtos naturais ou com pequeno grau de industrialização que atendem às necessidades para uma alimentação equilibrada e também fazem parte da cultura alimentar das diversas regiões do país. Uma segunda relação de produtos inclui outros considerados importantes, mas não tão essenciais como os da primeira. Conhecida como cesta básica expandida, tem produtos que receberam isenção de até 60%.
Já o imposto seletivo pretende desestimular o consumo de produtos que são prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Mas não se trata apenas de interferir no que as pessoas devem ou não consumir. Os defensores argumentam que o consumo desses produtos causa custos elevados para o orçamento público, que acaba sendo usado para remediar os danos. O tratamento de pacientes com doenças associadas ao consumo deles no Sistema Único de Saúde é um dos casos lembrados.
Os ataques no Senado vieram nas duas frentes: na inclusão de produtos ultraprocessados na cesta básica expandida, como bolachas, massas instantâneas e extratos de tomate; e na retirada de produtos altamente prejudiciais à saúde da lista do imposto do pecado, notadamente o refrigerante.
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Os dois movimentos partiram do mesmo senador, Vanderlan Cardoso (PSD-GO). Nascido em 1962, ele seria dois anos mais novo que o compositor da música, que era de 1960. O político, que também é empresário, não teria nem como disfarçar os interesses pessoais que suas propostas atendem.
Ele é dono da Cicopal, uma empresa que produz bolachas, salgadinhos, refrigerantes, sucos em pó e outros ultraprocessados. Criada em 1993, a empresa se mudou três anos depois para Senador Canedo (GO), cidade da qual Cardoso seria prefeito anos depois. Em 2001, expandiu seus negócios, com a construção de outra fábrica no Pará, e, no ano seguinte, na Bahia.
A Cicopal é dona de marcas como Sullper, Nelita e Micos. Em comum, as embalagens de seus produtos carregam os alertas obrigatórios de prejudiciais à saúde, pelo alto teor de sódio, gorduras saturadas e açúcar adicionado. Alguns deles chegam a ter mais de um aviso. O grupo tem capital de R$ 30,6 milhões.
Na eleição deste ano, Cardoso declarou R$ 26,8 milhões em bens. Ele tentou sem sucesso, pela terceira vez, eleger-se prefeito de Goiânia. Também foi derrotado em duas eleições para governador.
A inserção não passou só por ele. Para dar certo, contou com o apoio do líder do partido, o senador Otto Alencar (BA). Os destaques ao relatório estavam sendo feitos pelos líderes partidários. A família dele também tem interesse do tema. O deputado federal Otto Alencar Filho é dono da Fonor – Forte Nordeste, uma empresa distribuidora de bebidas.
O senador não é da chamada Geração Coca-Cola (tem 77 anos), mas guarda proximidade com a empresa e o setor. Ele costuma ter diversas agendas públicas com o diretor de Relações Governamentais da Coca-Cola Brasil, Victor Bicca, que também é presidente Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas (Abir).
Em 2014, quando as empresas ainda podiam financiar campanhas eleitorais, Alencar recebeu uma doação de R$ 1,19 milhão da Abir e R$ 320 mil da Coca-Cola para sua campanha ao Senado. O valor corresponde a 24% do total que ele declarou de arrecadação naquele ano. Ele foi reeleito em 2022, com recursos financiados pelo partido.
Para Marcello Baird, coordenador de advocacy da ACT Promoção da Saúde, a aprovação só foi possível também graças ao jogo duplo do relator, o senador Eduardo Braga (MDB-AM). Apesar de não ter colocado no texto inicial as alterações, o parlamentar defendeu a inclusão no momento que foram apresentados os destaques.
Assim como Cardoso, Braga é da Geração Coca-Cola, nascido no mesmo ano que Renato Russo. Na época do financiamento privado por empresas, ele chegou a receber doações da Ambev, fabricante de cervejas e refrigerantes. O parlamentar já atuou em outros momentos favoravelmente aos interesses do setor, como no caso dos subsídios às empresas que produzem xarope (concentrado de refrigerante) na Zona Franca de Manaus.
No dia seguinte à aprovação de seu texto no Senado, Braga esteve junto com outros políticos de seu estado e do vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin (PSB), na inauguração da expansão da fábrica de concentrados da Coca-Cola, a Recofarma, em Manaus.
Baird aponta que a nova lei, mesmo com problemas, tem avanços importantes em direção ao incentivo a uma alimentação mais saudável e à redução da inflação sobre alimentos. No entanto, deixa a desejar ao não colocar refrigerantes e outras bebidas açucaradas no imposto do pecado. “Já são 81 países que aumentaram impostos sobre esse tipo de produto”, afirma.
Ele aponta outros riscos, como a manutenção de subsídios para a Zona Franca, que acabam subsidiando a produção de refrigerantes e bebidas açucaradas, e também, mesmo no caso de uma nova inclusão desses produtos na lista do imposto seletivo, a possibilidade de as empresas terem desconto na alíquota caso apresentem “ações mitigatórias” – 25%, na proposta de Eduardo Braga, que não deixa claro quais reduções de danos seriam consideradas para este fim.
Com este pacote de mudanças, a Geração Coca-Cola, de Braga e Cardoso, dá um passo contra a formação de uma nova geração: a dos consumidores de bebidas e alimentos mais saudáveis.
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Artigod Geração Coca-Cola faz piada no Congresso com as nossas leis publicado em O Joio e O Trigo.
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