Como a Coca-Cola acabou com a água de 800 famílias em Minas Gerais

Image

A sede da maior fabricante de refrigerantes do mundo custou pouco:
por R$ 800 mil e um poço doado a uma das comunidades, a companhia deve continuar transformando água pura em bebida ultraprocessada

“Coca-Cola não mata a sede, nem molha as plantas”, lia-se em um pequeno cartaz pregado na parede de um auditório da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Esta foi uma das dez manifestações exibidas em faixas de protesto durante a audiência pública no dia 10 de setembro para questionar o resultado do termo de compromisso assinado em junho pela Coca-Cola com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG).

A sala lotou com moradores de Suzana e Campinho, duas comunidades rurais em Brumadinho, a 55 quilômetros de Belo Horizonte. Ambas estão sem água desde 2015, quando a indústria se instalou em Itabirito, cidade vizinha. A audiência foi convocada pela deputada Beatriz Cerqueira (PT) após constatar que o termo de compromisso não contemplava a principal reivindicação das mais de 800 famílias: que suas nascentes voltem a verter água. 

Durante o inquérito civil, o MPMG determinou que a Coca-Cola e a autarquia de abastecimento de água de Itabirito, SAAE, encomendassem estudos de impacto hídrico para verificar se o bombeamento de água para a fábrica interferia na vazão das nascentes que servem às comunidades. Foram nove anos de investigação, em que os relatórios apresentados pela indústria e pela autarquia foram contestados por um geólogo da sociedade civil. Até que, em 2022, um relatório constatou que há, sim, interferência. Foi aí que o inquérito se encaminhou para o encerramento.

Audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais reuniu moradores de Suzana e Campinho. Foto: Guilherme Bergamini/ALMG

Sem envolver a comunidade na discussão dos termos de compromisso, o MPMG fez reuniões com a Coca-Cola, o SAAE de Itabirito e a Prefeitura de Brumadinho. No documento assinado em junho de 2024, o ressarcimento que coube à Coca-Cola foi um poço e o investimento de R$ 800 mil em infraestrutura e projetos socioambientais. A sede da gigante custou pouco: é o valor de 160 mil latas do refrigerante que leva seu nome. A fábrica de Itabirito produz esse volume em pouco mais de uma hora.

Brumadinho é o quarto maior município da região metropolitana de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, e tem 38,9 mil habitantes. A cidade é tão grande em área que contém múltiplas versões de si mesma: um pequeno centro urbano, onde vive a maior parte da população; Inhotim, o maior museu a céu aberto da América Latina; uma barragem de mineração rompida que matou 272 pessoas em 2019; e 19 comunidades rurais, que se espraiam entre dez e 40 quilômetros da sede. 

As mais afastadas, como Campinho e Suzana, estão no pé da Serra da Moeda, divisa geológica da cidade com o município de Itabirito. A elevação marca uma das bordas do Quadrilátero Ferrífero, região explorada desde o século 18 por mineração. A formação sui generis das montanhas do Quadrilátero Ferrífero faz com que elas sejam reservas de água em altitude: os aquíferos da região, em vez de serem confinados no subsolo de vales, estão em posição vertical.

É uma circunstância rara no mundo também pela composição dessas montanhas, de minério de ferro. Na prática, é como se a Serra da Moeda fosse um grande filtro que expulsa pelas nascentes uma água mineral pronta para beber. O principal aquífero da Serra da Moeda é o Cauê, de onde vem a água das nascentes e dos lençóis freáticos da região, e que dá de beber às comunidades de Brumadinho, a oeste da Serra, e ao Distrito Industrial de Itabirito, a leste. 

O bombeamento de grande volume do Cauê, feito para abastecer a indústria da Coca-Cola, baixa o nível do aquífero, e o fluxo de água das nascentes no topo da Serra se interrompe. É o que explicou o geólogo da ONG Abrace a Serra da Moeda, Ronald Fleischer, durante a audiência pública. 

Quem mora em Campinho há mais de dez anos diz que decidiu pelo endereço por causa da beleza natural e da profusão de água: nascentes brotavam do topo da Serra da Moeda e desciam pela encosta, formando cachoeiras, rios e córregos, que serpenteavam por quilômetros. Cada morador captava sua porção posicionando canos nos cursos d’água, e com ela regavam hortas, limpavam as casas e davam de beber aos animais. A região tinha muitos brejos e regos de água nos terrenos das casas. Rãs coaxavam e peixes eram pescados. Viam-se em bando aves de grande porte, como a seriema, e era mais fácil de avistar os naturalmente tímidos jacus.

Cláudio Bragança, presidente voluntário da Associação de Moradores de Campinho. Jardineiro, mora há 36 anos na região. “A água da lavagem da roupa eu uso pra passar no chão de casa. Jogo no pé de uma planta. Senão não sobra água para tomar banho”, afirma. No quintal de casa, ele mantinha um viveiro com mudas de espécies para vender, mas a falta de água o fez desistir. “Teve um ano que perdi mais de 300 mudas de palmeira. Tive que queimar tudo”, lembra. Foto: Nilmar Lage/DivulgaçãoEliete do Carmo, vice-diretora financeira voluntária da Associação de Moradores de Campinho. Dona de casa, mora há 39 anos na região. Foi numa atividade cotidiana que notou a falta de água. “A gente tinha que segurar a ponta da mangueira quando abria a torneira pra regar as plantas, porque a pressão era muita. Aí, de repente, a mangueira, lá no chão, nem se mexia.” Foi aí que os moradores subiram até a nascente para ver o que estava acontecendo. “O pessoal já começou a falar: ‘estão morrendo os jacus. Cadê aquela quantidade de mico que tinha?’ Nós passamos dois, três meses sem entender. Até que a ONG Abrace a Serra da Moeda nos informou que tinha aberto a fábrica da Coca-Cola”, recorda. Foto: Nilmar Lage/DivulgaçãoCoracy da Silva, morador de Campinho há 20 anos. “Quando eu vim pra cá, fiquei encantado com o lugar e já fechei negócio. Vi muita água correndo no meu terreno, nos fundos da minha casa, num corregozinho que tinha nos fundos”, relembra. Hoje, não há mais córrego. O brejo que havia numa área aos fundos, onde Coracy posa para a foto, hoje é um solo rachado de tão seco. “Falta o básico pra nós. Estamos falando de seca mesmo, de água pra banho, pra um animal beber. Quem tem condições melhores, compra água. Quem não tem, passa dificuldade”. Foto: Nilmar Lage/DivulgaçãoLuiz Gonzaga Santos da Cruz, caseiro de uma propriedade ao pé da Serra da Moeda, mostra quanta água escorre onde antes foi uma cachoeira em Suzana. Foto: Nilmar Lage/DivulgaçãoCachoeira de Suzana, antes da instalação da Coca-Cola em Itabirito. Registro de arquivo de Juliana Antunes, proprietária de um imóvel em Suzana.

Em 2015, essa abundância secou. Era agosto, época de estiagem, mas ninguém tinha visto nada igual em outros períodos sem chuva. Intrigados, moradores subiram à nascente para ver se, porventura, o curso d’água havia mudado de direção e estava descendo por outro sulco na terra. Quando chegaram aos mais de 1.300 metros de altitude, constataram que as três nascentes, que antes encharcavam Campinho, escorriam água como se fossem uma torneira mal fechada. 

Ninguém em Campinho sabia à época, mas dois meses antes, em junho de 2015, a Coca-Cola havia começado a bombear 375 mil litros de água por hora através de três poços em Itabirito, município que fica do outro lado da Serra da Moeda. Segundo medição da ONG Abrace a Serra da Moeda, os poços estão instalados a menos de 600 metros das nascentes e a dois quilômetros da área de proteção ambiental Monumento Natural da Serra da Moeda. 

Mais lidas do mês

Mais um poço

Um quadrado de concreto com um tubo verde desponta na comunidade de Campinho desde agosto de 2024. É um poço de 160 metros de profundidade, que deve ser concluído até 2026 pela Coca-Cola, segundo cronograma do termo de compromisso que a companhia assinou. Falta a bomba e falta instalar uma rede elétrica independente para que o maquinário funcione, porque a região sofre com queda de luz inúmeras vezes por semana. 

Essa intermitência atrapalha, mas não inviabiliza a vida na comunidade. O que, sim, dificulta a vida dos moradores é a escassez de água, que outrora era abundante. A falta fez com que muita gente desistisse de manter hortas e rebanhos, e a insuficiência do recurso tem instaurado conflitos entre os vizinhos.

A tubulação verde é o poço construído pela Coca-Cola em Campinho. A obra faz parte do cumprimento do termo de compromisso da fabricante de refrigerantes assinado junto ao Ministério Público de Minas Gerais. Atrás, a edificação que guardará o maquinário para bombeamento da água. Foto: Nilmar Lage/Divulgação

Ao lado do poço, está uma pequena horta com pés de manjericão e cebolinha em flor. É cultivada por José Francisco Alves, o Seu Zezinho, 63 anos, mecânico e morador da região há 19 anos. Em 11 de setembro, quando a reportagem esteve no local, a região completava 140 dias sem chuva. A temperatura batia os 32 graus, com o sol a pino; a umidade relativa do ar era de 43%. Apesar disso, os pés de pimenta, couve, alface, beterraba e cenoura cresciam verdejantes. 

Mal tinha vento, mas a terra voava fácil e tingia tudo de vermelho. Seu Zezinho preparava um canteiro de menos de dois metros quadrados com esterco de gado. “O certo era molhar a terra pra misturar melhor, mas não tem água. Regar, só se for de manhã cedo ou no final da tarde. Nesse calor, a água vai cozinhar a planta”, comentou. 

Seu Zezinho: mecânico mora há 19 anos em Campinho. Como muitos, decidiu comprar um terreno na região pela beleza natural e abundância de água. Foto: Nilmar Lage/Divulgação

Seu Zezinho mora ao lado do poço perfurado pela Coca-Cola, e estava exultante com a novidade. A Hidropoços, empresa responsável pela obra, assegura que o poço tem capacidade de fornecer 36 mil litros por hora. 

Mas não era isso que a comunidade queria. A região é cheia de poços artesianos, que desde 2015 secam em poucos anos. Os lençóis freáticos, de onde se tira água ao perfurar um poço, se originam do mesmo reservatório que faz as nascentes brotarem, e dependem da composição e fratura das camadas do solo para que se consiga acessar um bom veio de água. Se o nível do Cauê está baixo, baixam também os níveis do lençol freático. 

Com a água faltando, sofrem os humanos e sofrem os bichos. Poços não restauram o que perdeu a natureza: a fauna não tem onde beber água e se refrescar. A flora, além de ressecada pela falta de água, sofreu com um incêndio no final de agosto, que queimou 25% da unidade de preservação. Mais de 500 hectares dos 2,3 mil hectares do Monumento Natural Estadual da Serra da Moeda estavam carbonizados. A superfície da montanha, que já foi prateada de tanta água, com pinceladas roxas de jacarandá, hoje é marrom, cinza e preta. 

O ambientalista Cléverson Vidigal, da ONG Abrace a Serra da Moeda, aponta onde estavam as nascentes de Campinho, que secaram há quase dez anos. Antes, viam-se fios prateados descendo a Serra da Moeda. Foto: Nilmar Lage/Divulgação

O buraco é mais em cima: omissão dos órgãos ambientais

Como a Coca-Cola de Itabirito consegue funcionar há nove anos sem interrupções é uma história cheia de lacunas. A indústria é uma operação da Femsa, a maior engarrafadora da Coca-Cola no mundo e o braço mais lucrativo da indústria: no acumulado de nove meses de 2024, seu lucro líquido foi de US$ 928,57 milhões. A operação em Minas Gerais é feita pela Spal Indústria Brasileira de Bebidas Ltda., uma das maiores subsidiárias da Femsa na América Latina. O Brasil é o segundo país no continente em que a Femsa mais investiu. 

A fábrica no Distrito Industrial de Água Limpa, em Itabirito, ocupa 20 hectares e produz 1,122 milhão de litros por dia, o equivalente a 409,5 milhões de litros por ano. Menos de um quarto da capacidade instalada da unidade de Itabirito, de 2,1 bilhões de litros por ano de refrigerantes, sucos e água engarrafada. É o dobro do que tinha a antiga fábrica, que funcionou em Belo Horizonte até 2011, quando se anunciou a migração à cidade vizinha. 

A companhia queria ampliar a produção de bebidas no estado mineiro, e encontrou a oportunidade em Itabirito. O estado de Minas Gerais tem como prática dar isenção ou grandes descontos fiscais para a indústria; para 2025, estima abrir mão de mais de R$ 20 bilhões em arrecadação. Dentre os setores incentivados, está o de bebidas alcoólicas e não alcoólicas. 

A estimativa era de uma geração de R$ 250 milhões em Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Porém, a corporação se beneficiou de “um bom desconto no ICMS”, segundo declarou à imprensa o presidente da Coca-Cola Femsa no Brasil à época, José Ramón Martínez. A indústria também teve outras regalias: em vez de solicitar uma outorga em seu próprio CNPJ, a Coca-Cola firmou um contrato com a autarquia de abastecimento público, SAAE de Itabirito, para receber a água do subsolo da Serra da Moeda pronta para uso em sua fábrica. 

A fabricação de bebidas não consta na lista da Secretaria do Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Semad) de Minas Gerais como atividade em que um Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) seja obrigatório. No site da secretaria, a norma do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) de 1986 é usada como baliza, uma versão em que a fabricação de bebidas não era citada. Mas a normativa passou por uma atualização em 1997, na qual o setor foi incluído. 

Procurada, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), órgão de apoio técnico e científico da Semad, respondeu em nota à reportagem que a atividade de produção de bebidas “não é considerada de significativo impacto ambiental pelas normas vigentes no Estado de Minas Gerais e, por esta razão, não se faz necessária a apresentação de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA)”, e que a resolução de 1997 da Conama “dispõe que os órgãos ambientais competentes definirão os estudos e as modalidades do licenciamento ambiental.” 

A Coca-Cola aproveitou o EIA-RIMA elaborado em 2011 pela Prefeitura de Itabirito para o Distrito Industrial de Água Limpa, que dividia a área em três lotes – em nenhum deles estava prevista a instalação de uma indústria que usasse água como matéria-prima. Por isso, o documento não trazia detalhes da pressão hídrica que uma fábrica de refrigerantes poderia causar. 

Mas a indústria de bebidas é uma grande usuária de água: para cada litro de refrigerante produzido, a Coca-Cola de Itabirito diz usar 1,4 litro de água. Ou seja: por dia, são 1,57 milhão de litros de água na unidade mineira.

“A Coca-Cola ficou responsável por elaborar dois relatórios, o Relatório de Controle Ambiental e o Plano de Controle Ambiental, que são relatórios muito simples e que não tinham como objetivo apontar o impacto da indústria na região”, relembra Cléverson Vidigal, ambientalista integrante da ONG Abrace a Serra da Moeda.

Com isso, a Coca-Cola conseguiu a licença prévia para as construções começarem. Este foi o erro fundamental. A partir daí, não havia como voltar atrás. 

Receba conteúdos exclusivos do Joio de graça no seu email

Transformando água em refrigerante 

Para produzir refrigerantes, é preciso água. E o melhor tipo é sempre a subterrânea: sem impurezas e contaminações que a água de rios naturalmente tem pela exposição da superfície, a água subterrânea precisa de menos filtragem e tratamento para ser potável. 

Indústrias que demandam um alto volume de água obtêm o acesso através de outorgas, solicitações de extração de água feitas para a União ou para o estado. Com essa autorização, a indústria prescinde do uso de infraestrutura de abastecimento de água público, e fica responsável por construir o poço, fazer o bombeamento e o tratamento dessa água por conta própria. É de responsabilidade da própria empresa o controle de quanto captou por mês e o respeito ao limite imposto pela outorga. 

Todos os anos, a indústria declara seu consumo à Agência Nacional de Águas (ANA) e paga pelo volume usado, a depender do valor da cobrança por metro cúbico dentro de sua bacia hidrográfica. Não há uma estrutura para gestão, controle e fiscalização desse consumo – é preciso que a própria indústria declare se usou mais água do que poderia ou que haja uma denúncia para investigar o uso indevido. Os comitês de bacia hidrográfica são as estruturas criadas para gerir o uso de água e dirimir conflitos, mas sua estrutura contempla a participação da indústria nos processos decisórios. 

Os dados de outorga são públicos, mas pouco organizados. Os federais estão disponíveis detalhadamente no site da ANA, mas os estaduais não estão compilados; em alguns casos, o órgão responsável do estado sequer organizou as informações. 

No caso de Itabirito, a Coca-Cola não tem outorgas para uso de água subterrânea. A gigante assinou um contrato com a autarquia de abastecimento público da cidade, SAAE, que ficou responsável por perfurar os poços, bombear e tratar a água. 

A Coca-Cola recebe o recurso pronto para usar. Para isso, paga R$ 3,96 a cada mil litros captados e R$ 3,76 a cada mil litros como tarifa de serviço de operação e manutenção dos poços. A título de comparação, a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), que atende mais de 600 municípios mineiros, entrega água tratada para as casas a R$ 2,20 até 5 mil litros de consumo por mês.

O arranjo criou condições para que a Coca-Cola pudesse se eximir da responsabilidade de apresentar um estudo de impacto hídrico na região, e permitiu que ambas as partes fossem vagas em suas defesas e atuações. 

Em 2021, o SAAE conseguiu um aumento de vazão para os três poços ao pé da Serra da Moeda com a justificativa de “abastecimento humano”. Nos últimos anos, a habitação nos arredores do Distrito Industrial de Água Limpa aumentou a partir de um início de regularização fundiária. O volume total que pode ser extraído por hora atualmente é de 514 mil litros – 37% a mais que a outorga de 2011, que tinha como justificativa “uso industrial”. O SAAE não informa quanto dessa vazão é destinada para a Coca-Cola e quanto é para os moradores de Itabirito. 

Imagem: Reprodução

Em 2022, a Coca-Cola encaminhou à Semad um pedido de ampliação de sua linha de produção que impactaria em um consumo de até 113 mil litros de água a mais por dia. O pedido foi deferido. Em resposta à reportagem, a Feam justificou o deferimento “baseado no fato de que as condições ambientais do empreendimento haviam sido analisadas e aprovadas em licenças anteriores, sem que houvesse aumento da área diretamente afetada”.

Procurado pela reportagem, o SAAE de Itabirito afirmou que não poderia se pronunciar por ser período eleitoral no Brasil. Em resposta a um pedido de entrevista, a Coca-Cola afirmou que “a planta conta com todas as licenças operacionais e ambientais necessárias para seu funcionamento”, sem especificar quais, e que “a companhia está investindo na implementação de medidas conjuntas para promover benefícios ambientais na região da Serra da Moeda”, sem explicitar que se trata de uma exigência do termo de compromisso que assinou junto do Ministério Público.  

Denúncias não suspenderam fornecimento de água

Quando a seca chegou no Campinho, em 2015, a ONG Abrace a Serra da Moeda se articulou com a comunidade para fazer uma denúncia ao Ministério Público (MP) apontando a falta de estudos de impacto hídrico. “Passamos a fazer levantamentos e vimos que, dentro do processo ambiental, não havia sido solicitado um novo EIA-RIMA”, conta Vidigal. 

Em um acordo extrajudicial feito entre Coca-Cola e a Associação de Moradores de Campinho em 2015, a companhia envia 40 mil litros de água potável diariamente para a comunidade através de caminhões-pipa. Foto: Nilmar Lage/Divulgação

A queixa foi incluída em um inquérito de 2011, aberto para investigar os impactos que a instalação da fábrica às margens de uma rodovia federal poderia trazer para a região. O inquérito seguiu a partir da denúncia da comunidade. 

Em paralelo, a ONG e a comunidade se reuniram com representantes da Coca-Cola para falar sobre a escassez de água. “Imediatamente eles assumiram o compromisso de enviar à comunidade um caminhão-pipa diariamente”, relembra Vidigal. 

O encontro não foi documentado em ata, mas o acordo foi consolidado meses depois, em outubro, quando a Coca-Cola assinou o primeiro termo de compromisso com o MP. A multinacional se comprometeu a enviar a Campinho 40 mil litros de água diariamente até a questão ser resolvida – os envios seguem até hoje. 

A partir de outubro de 2015, para tentarem se eximir da responsabilidade, o SAAE e a Coca-Cola contrataram uma série de estudos hidrogeológicos para as empresas de consultoria Angel, Schlumberger e Water Service Brasil, que apontavam que o problema da falta de água era causado pela baixa pluviosidade na região desde 2012, e não pelos poços. O geólogo Ronald Fleischer, da ONG Abrace a Serra da Moeda, redigiu relatórios contestando cada ponto apresentado pelas terceirizadas e os protocolou junto ao inquérito civil. 

Essa disputa se estendeu até 2022, quando a Hidrovia, uma nova empresa que estava prestando assistência ao SAAE de Itabirito, apontou interferências do bombeamento dos poços na vazão das nascentes de Campinho e Suzana. 

O MP determinou que a Coca-Cola contratasse o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) de São Paulo para auditar o relatório da Hidrovia. O IPT corroborou o resultado. 

Foi então que o MP convocou o SAAE de Itabirito, a Coca-Cola e a Prefeitura de Brumadinho para discutir os pontos do termo de compromisso. A comunidade afetada, que tinha suas demandas, não foi convidada para defender seus pontos na redação do termo. Nem a ONG Abrace a Serra da Moeda, que já havia participado de dezenas de reuniões sobre o impacto ambiental da fábrica. 

Os moradores de Campinho participaram de uma audiência com o MP três dias antes da assinatura do termo de compromisso, sem saber que as tratativas entre as partes estavam finalizadas. 

O pedido da comunidade era que a indústria passasse a fornecer água para eles a partir dos poços já furados. Ou que acatasse a sugestão da ONG Abrace a Serra da Moeda: que se cessasse o uso dos poços e passasse a extrair água a partir do direito minerário que já detém sobre a fonte Água Quente, fora da Serra da Moeda. 

Os apelos não foram considerados pelo MP, mas o órgão incluiu no termo de compromisso a necessidade de que a Coca-Cola realize um estudo locacional para encontrar outro ponto para extração de água. Não ficou claro no termo de compromisso o que acontece se SAAE e Coca-Cola alegarem que não há fonte alternativa para extração. 

Em agosto, a Connectas e o Joio solicitaram uma entrevista com o promotor responsável pelo caso, mas não obtivemos retorno do MP até o fechamento desta reportagem.

Com o segundo termo de compromisso, assinado em junho de 2024, o MP encerrou as investigações e pareceu satisfeito com o resultado. 

Como mencionamos, a responsabilização que coube à Coca-Cola foi pagar R$ 800 mil e furar um poço para abastecer Campinho. Segundo o cronograma apresentado, o poço deve ser testado e entregue em 2026. Quando começar a funcionar, a companhia pode cessar o envio de caminhões-pipa. 

A Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Brumadinho disse à comunidade e à ONG que exigiria no mínimo 30 anos de garantia de operação do poço. Mas o termo cita 6 meses. Ou seja: caso funcione por seis meses e depois seque, a responsabilidade não é mais da Coca-Cola, e sim do município. 

A Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Legislativa de Minas Gerais convocou uma audiência pública para “fazer algo que o Ministério Público do Estado não fez”, segundo a deputada Beatriz Cerqueira, que presidiu a sessão: ouvir as necessidades da comunidade. 

Por isso, o SAAE de Itabirito e a Coca-Cola não foram convidados. “A Coca-Cola não foi convidada, porque grandes empreendimentos vêm com poder político, vêm com poder econômico e estabelecem outra dinâmica, diminuindo o lugar de fala da comunidade”, disse a deputada. Os representantes do Ministério Público em Brumadinho e do Ministério Público do Meio Ambiente foram convidados, mas justificaram sua ausência com uma nota, alegando que “o tema foi amplamente debatido com a comunidade e celebrado termo que atende aos melhores interesses socioambientais e comunitários”. Nenhum morador presente na audiência pública pareceu concordar com a afirmação. 

Dos R$ 800 mil que a Coca-Cola terá de desembolsar, R$ 100 mil estão destinados à Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Brumadinho, que deve investir em infraestrutura em Campinho. Ao SAAE, coube revisar o monitoramento de água em até seis meses; adicionar um ponto de medição de água; apresentar um novo plano de revisão do estudo geológico da região e propor alternativas técnicas para abastecimento das comunidades de forma a minimizar o impacto causado pelos três poços perfurados em Itabirito. 

O questionamento principal da audiência pública foi endereçado aos órgãos de meio ambiente: por que a Coca-Cola conseguiu se instalar em Itabirito, mesmo sem entregar um estudo detalhado da pressão hídrica que a fábrica traria à região? Por que as outorgas de água que abastecem a fábrica permanecem vigentes, mesmo tendo indícios de impacto no abastecimento das comunidades por anos a fio?  

As perguntas ficaram sem respostas objetivas. “Existe a possibilidade de redução de vazão das captações para que não haja um impacto direto nas nascentes. Existe também o adensamento da rede de monitoramento para conseguir caracterizar melhor esse impacto e, se for o caso, as outorgas podem ser revistas”, disse Isadora Filippo, gerente de regulação do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam), durante a audiência. O Igam não soube informar o prazo para ter essa conclusão.

Para os moradores e ambientalistas, o Igam deveria ter agido de forma preventiva, diminuindo a vazão outorgada ou suspendendo a licença de captação de água destinada à Coca-Cola nos primeiros indícios de interferência. 

O diretor do Igam, por sua vez, discorda. “Tem que ter o princípio da precaução pros dois lados, não só na questão de garantir a água para a comunidade. É uma condicionante desse tipo de processo: quando há algum impacto como esse, a empresa tem que garantir fornecimento de água mesmo sem ter comprovação direta que é o impacto dela. Enquanto isso, se faz a apuração para ter o nexo causal e ver o que está impactando. A responsabilidade é do detentor da outorga. É responsabilidade do SAAE, e não da Coca-Cola”, disse Marcelo Fonseca em entrevista em setembro.

Em novembro, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Legislativa fez uma visita técnica ao Igam para discutir a vazão de outorga do Saae de Itabirito. Colocou-se um prazo: a autarquia tem até março de 2025 para reduzir a vazão de dois poços ao pé da Serra da Moeda, cuja atividade causa interferência nas nascentes das comunidades rurais de Brumadinho. 

Ao mesmo tempo, o Saae deve ativar um poço que ainda não está em operação, e que não impacta a vazão das nascentes da cidade vizinha.

Suzana: mesmos problemas, nenhuma solução

Vizinha a Campinho e com uma nascente que também secou em 2015, Suzana amarga uma indefinição. A comunidade não entrou no termo de ajuste de conduta do Ministério Público, nem recebe envios de caminhão-pipa da Coca-Cola.

A região da nascente de Suzana sofreu com as queimadas em agosto. A vazão da cachoeira formada pelo manancial diminuiu 80% desde 2015. Foto: Nilmar Lage/Divulgação]

Assim como Campinho, o abastecimento de água é feito pelos próprios moradores, mas Suzana criou uma associação separadamente para administrar o uso da água, a Associação de Captação da Água da Serra (Acas). Em 2017, a Prefeitura de Brumadinho autorizou a Acas a captar e distribuir água aos moradores de quatro comunidades: Suzana, Córrego do Barbeiro, Samambaia e Barreiros. Em entrevista, o presidente da Associação, Denilson Fontoura, afirmou que atualmente são oito povoados abastecidos – Barreiros se divide em duas, e somam-se a elas Caminho das Tropas, Chácara e Padre Antônio. 

Em 2022, a associação foi autorizada a administrar a cobrança de uso de água. A prefeitura paga dois funcionários: um que lê os hidrômetros das casas e outro que faz a parte executiva da cobrança. Já os integrantes da associação, como o presidente Denilson, são voluntários. 

O cano de captação fica em uma cachoeira cuja vazão diminuiu 80% desde 2015 – foi de 24,9 m3 por hora em julho de 2015 para 5,1 m3 por hora em junho de 2024. A medição foi feita pela empresa Water Service Brasil sob encomenda do SAAE de Itabirito.

O valor arrecadado pela cobrança da água paga a manutenção dos cerca de 20 quilômetros de infraestrutura de distribuição e o aluguel de um caminhão-pipa aos fins de semana, quando a falta de água se torna mais aguda. 

Canos de outorga da Prefeitura de Brumadinho e de dois condomínios de casas, que têm suas próprias estações de água, na Cachoeira Mãe D’Água. Foto: Nilmar Lage/Divulgação

Pousadas e sítios recebem mais pessoas entre sexta e domingo e, para complementar o abastecimento, a Acas aluga um caminhão-pipa a R$ 2 mil a diária, que vai à Cachoeira Mãe d’Água buscar 120 mil litros de água semanalmente. A água é cedida pela Prefeitura de Brumadinho, que detém as outorgas de captação no corpo hídrico. “Nos anos anteriores, quando teve maior escassez de água, teve a [mineradora] Vale doando dois caminhões-pipa de 20 mil litros cada por 90 dias”, recorda Denilson. A atividade de mineração, que batiza o estado de Minas Gerais, explora trechos da Serra da Moeda e causa problemas similares em outras regiões do Quadrilátero Ferrífero. 

A Acas perfurou mais dois poços desde que a água da nascente começou a escassear, cada um com uma vazão de cinco mil litros por hora, segundo Denilson. No período de seca, entre maio e outubro, é preciso bombear água 24 horas por dia, impedindo o poço de ter seu período de descanso e recarga. 

“Para [os poços] funcionarem em período de seca, está custando R$ 20 mil de energia elétrica mensal”, apontou Gustavo Morais, representante da Acas, durante a audiência pública. “Antes da perfuração dos poços [pelo SAAE de Itabirito para abastecer a Coca-Cola], a gente conseguia atender toda a comunidade com a captação de uma nascente e um poço. Hoje são três poços.” E ainda falta água.

Rusgas entre vizinhos se tornaram comuns depois de anos sem água tanto em Campinho quanto em Suzana. “O povo do Campinho tá vivendo uma situação de calamidade. Tá ficando desconfortável viver na comunidade, porque tá gerando atrito entre os vizinhos pela falta de água. Os moradores acham que a associação é a culpada por esse impacto”, declarou Cláudio Bragança, presidente da Associação de Moradores do Campinho, durante a audiência pública. 

Seis moradores de Suzana, que construíram suas casas na parte mais alta da comunidade, ficam de fora da distribuição da Acas. A associação diz que é porque cada um dos moradores tem seus próprios canos para captação. Os moradores, por sua vez, acusam a Acas de ter subido “um cano a 300 metros, com barreiras para a água ir só para o cano deles” e estar coletando uma vazão mais próxima da nascente, restando menos água para eles, que continuam com sua tubulação na mesma altura. 

“Temos a outorga da água e a permissão é para uso doméstico. Mas estamos sem água por completo”, relata Juliana Antunes, proprietária de uma casa na parte mais alta de Suzana. Sua família tem uma outorga de um litro de água por segundo. O volume é considerado insignificante e dispensa prestação de contas e pagamento pelo volume. 

Mesmo que a assinatura do termo de compromisso encerre parte desta história, ainda há movimentação para tentar pressionar os órgãos públicos a fecharem os poços do SAAE no pé da Serra e a fazer a Coca-Cola captar água em outro ponto. “Não vamos deixar essa história acabar com a canetada do Ministério Público, que diz que resolveu, mas não resolveu”, finalizou Gustavo, aplaudido pelos vizinhos.  

Artigod Como a Coca-Cola acabou com a água de 800 famílias em Minas Gerais publicado em O Joio e O Trigo.

​Reportagens – O Joio e O Trigo Leer más 

Scroll al inicio