Estudantes de federal de MG sofrem com insegurança alimentar: ‘fruta, legumes e carne o dinheiro não alcança’

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Novo estudo mostra situação delicada na garantia de alimentação, o que afeta a permanência no ensino superior, especialmente de pessoas negras e mulheres

Dividir a renda entre alimentação e medicamentos, ou ainda deixar de consumir carnes, legumes e frutas para priorizar a compra do arroz e do feijão: esse é o cotidiano de estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica da Universidade Federal de Lavras (UFLA), localizada no sul de Minas Gerais. 

O pouco acesso de forma regular e suficiente a alimentos saudáveis e nutritivos atinge tanto os alunos que possuem acesso ao programa de Assistência Estudantil quanto os que não se incluem nessas ações. Entre esses discentes, a insegurança alimentar e nutricional varia conforme gênero, classe e cor. É o que conclui o estudo de Isabela Aparecida de Abreu, da mesma universidade, intitulado: “Fome tem gênero, classe e cor: interseccionalidade e a insegurança alimentar de residentes em uma moradia estudantil universitária”.

Este é o segundo estudo, em menos de um ano, a apontar uma situação ruim em termos da garantia da alimentação de estudantes universitários. O primeiro, realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mostrou que o índice de insegurança alimentar e nutricional entre cotistas era o dobro, na comparação com estudantes que ingressaram de outras maneiras. 

Os dados revelados pela UFLA tornam ainda mais evidente a necessidade de um mapeamento nacional da situação. Em sua dissertação de mestrado, Isabela Aparecida de Abreu revelou que 100% dos discentes entrevistados estão em situação de insegurança alimentar. Desse total, 42,9% deles estão em Insegurança Alimentar Moderada (IAM), 28,6% em Insegurança Alimentar Grave (IAG) e o mesmo valor em Insegurança Alimentar Leve (IAL). Foram ouvidos 14 alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica e que vivem na Moradia Estudantil, em novembro de 2023.

Apesar desse cenário, ela destaca que estudantes que não possuem bolsas ligadas a algum trabalho na universidade têm mais dificuldade de manter uma alimentação saudável, uma vez que discentes que não possuem o benefício estão em graus grave e médio de insegurança alimentar e nutricional. 

Alunos que possuem bolsa somada a uma outra fonte de renda concentram-se na classificação leve, enquanto aqueles que dependem apenas da bolsa estão distribuídos nos três níveis de insegurança. “Isso mostra como a bolsa é extremamente importante para minimizar a questão”, diz a pesquisadora. Ainda assim, a política de alimentação e permanência não é suficiente. 

No restaurante universitário são oferecidas duas refeições por dia com custo de R$ 1 para bolsistas e de R$ 6 para não bolsistas. “Tem relatos de alunos que comem apenas isso. Para acessar mais alimentos e refeições, precisam pagar para comer”, diz ela. 

Para os alunos em situação de vulnerabilidade socioeconômica, os valores são caros e existe uma forte demanda por gratuidade na alimentação, o que já deveria acontecer depois que o Programa de Alimentação Saudável na Educação Superior (Pases) entrou em vigor, a partir da sanção da Lei 14.914, de 2024.

Para lidar com esse cenário, os universitários precisam trabalhar de maneira informal, explica a pesquisadora. “Do pouco dinheiro que entra, eles precisam escolher entre comida versus necessidades essenciais, como saúde, lazer, transporte, vestimentas, produtos de limpeza. Toda essa pressão contribui para afetar a saúde dos estudantes, tanto física quanto mental”, alega.

Esse é o caso de Mariana*. Ela entrou na universidade em 2016 e, na época, tinha um trabalho fixo, fora da universidade. Pouco tempo depois conseguiu acessar a política de moradia da universidade, junto a uma bolsa. “Até o ano passado a bolsa era de R$ 300. Tive que comprar um notebook para estudar. Com a bolsa de R$ 300, tentei juntar dinheiro e vivi do restaurante universitário. Então não tomava café e não saía com amigos porque não tinha dinheiro.”

Ainda assim, ela classifica o acesso à bolsa e à política de moradia como “um alívio”, já que ter habitação, luz, água, internet e alimentação por R$ 1 foi um dos pilares para a garantia do acesso à educação pública e superior de qualidade. “Se não existisse isso eu acho que não conseguiria concluir o curso.” Para ela, trabalhar fora e dedicar-se às disciplinas de um curso integral era praticamente inviável. “Lembro que eu me cansava muito física e mentalmente, sendo CLT e fazendo um curso integral em uma universidade federal”, diz a estudante.

Restaurante Universitário da Universidade Federal de Lavras (UFLA), localizado no sul de Minas Gerais. Foto: UFLA

A fome agravada: desigualdade de gênero e racial

Diferentes distorções foram encontradas por Abreu durante a investigação. Ela percebeu no cenário da universidade aquilo que é encontrado por todos os levantamentos sobre fome no Brasil: questões relacionadas a gênero e raça merecem atenção. Pessoas negras podem ser mais afetadas pela fome, pois são maioria em situação de vulnerabilidade socioeconômica e na moradia na UFLA – elas estão distribuídas nos três níveis de insegurança alimentar. 

Entre as mulheres, a pesquisadora apontou que, ao se tornarem mães, elas enfrentam dificuldades adicionais, como a perda do alojamento e a precarização da segurança alimentar. 

Dentre os entrevistados, todos conhecem uma mulher que virou mãe e teve de deixar a moradia. Por outro lado, todos conhecem homens que viraram pais e continuam na moradia. “A vizinha virou mãe, perdeu a moradia, com o pai isso não acontece. Mas e a igualdade? Esquece. Quantas pessoas no alojamento não têm um pai presente? Cuidado é coisa da mulher, com essa injustiça a sociedade consente”, diz um dos entrevistados, cujo nome não foi identificado no estudo. 

O medo de tornar-se mãe e perder o acesso à moradia estudantil, assim como o aumento no custo de vida, coloca-as em situações drásticas. “A vizinha, com medo de perder a universidade, abortou. A fome anda junto com a desigualdade de gênero e de raça”, relatou outro estudante na pesquisa.

Além da perda da habitação, a restrição alimentar entre as mulheres lactantes é agravada já que apenas as duas refeições do restaurante universitário, almoço e jantar, não “são suficientes para suprir as necessidades nutricionais de uma mulher que amamenta”, diz a pesquisa. 

A Moradia Estudantil da UFLA abriga de seis a oito pessoas, cada unidade tem direito a uma cesta básica. Foto: UFLA

Bolsa-trabalho e a fome

Além do Programa de Alimentação e de Moradia Estudantil, alguns estudantes acessam bolsas por horas trabalhadas em projetos e pesquisas da própria universidade. Os valores deste ano vão de R$ 525 para quem trabalha 12 horas semanais a R$ 800 para 20 horas. 

Ainda que a remuneração dê um pequeno respiro no orçamento, a bolsa de estudos possui “viés trabalhista”, segundo a pesquisa de Abreu. Isso porque muitas vezes esse benefício não está relacionado ao curso ou interesse acadêmico do estudante e acaba exigindo dedicação a atividades que, para eles, não contribuem para o desenvolvimento profissional. Enquanto isso, outros alunos que não precisam da bolsa podem participar do que quiserem, informa a pesquisadora. “Eles conseguem se dedicar integralmente às suas áreas de interesse, sem ficar ‘refém’ de um projeto que não é da sua área, por exemplo.” 

Fora isso, estudantes relataram ter dificuldade de conciliar o horário do trabalho com o das refeições servidas no restaurante. “O tempo que eu tenho para ir almoçar eu estou trabalhando”, disse um deles ao estudo.

Mariana lembra de quando perdeu a bolsa por problemas burocráticos da própria universidade, o que prejudicou sua vida acadêmica. “Tive que trabalhar e largar tudo. Se você não tem dinheiro para a alimentação, não consegue pensar em mais nada”, afirma. “No restaurante só é fornecido o almoço e a janta, tem o déficit do café da manhã, principalmente com relação às frutas. Tem um déficit de vitaminas para as pessoas em situação econômica vulnerável.” 

Uma outra fonte de alimentação é ofertada aos estudantes da UFLA. Os universitários cadastrados no Programa de Moradia Estudantil podem obter uma cesta básica por moradia por mês, desde que comprovem a situação de vulnerabilidade no Centro de Referência e Assistência Social (Cras). 

“Vem um saco de cinco quilos de arroz, um de feijão, açúcar, um pacote de café, um óleo, fubá, dois pacotes de macarrão, duas latas de sardinha e um molho de tomate, mas é para dividir por todos os moradores do apartamento”, diz Mariana. O número de estudantes por unidade habitacional varia de seis a oito pessoas. 

A cesta contém itens básicos, não fornecendo vegetais e frutas. “A falta de acesso ao gás é um gargalo adicional que não é resolvido apenas com a assistência alimentar”, diz a dissertação.

Assim, o preço dos alimentos para complementar a dieta, junto ao pagamento do gás, impede que produtos frescos façam parte das refeições cotidianas dos universitários. “Preciso de saúde, transporte, lazer, roupa e coisas essenciais à vida, mas, nessa balança, o mais importante é a comida. Frutas, legumes e carne o dinheiro não alcança: são coisas supérfluas, busco o que dá sustança”, disse uma das pessoas entrevistadas por Abreu – não identificado no estudo.

Para outros, a escolha é entre o pagamento de medicamentos e alimentação. “O dinheiro muitas vezes não é suficiente para abranger ambas as necessidades básicas: saúde e alimentação, que ‘é o mínimo’”, aponta um estudante na pesquisa.

O restaurante universitário é comprovadamente um espaço que faz a diferença na garantia de segurança alimentar. Foto: UFLA

Universidades e o Programa de Alimentação Saudável na Educação Superior

Sancionada em julho deste ano, a Lei 14.914, que institui a Política Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), visa contribuir para a permanência dos estudantes de baixa renda nas universidades e institutos federais e possibilitar a conclusão dos cursos. 

Compõem a Pnaes dez programas, dentre eles, o Programa de Assistência Estudantil (PAE), o Programa de Bolsa Permanência (PBP), um auxílio financeiro para estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica e o Programa de Alimentação Saudável na Educação Superior (Pases). Dois meses após a aprovação da lei, a implementação das determinações ainda não é realidade em todas as universidades.

Manuela Mirella, presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE), explica que a efetivação do Pases ainda varia entre as universidades: enquanto algumas já estão adotando práticas de gratuidade ou redução de custos, outras ainda estão em processo de adaptação e implementação das diretrizes do programa. 

“Entre as universidades que oferecem a gratuidade para estudantes em situação de vulnerabilidade estão a UFBA (Universidade Federal da Bahia), a UFMA ( Universidade Federal do Maranhão) e a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)”, diz.

O programa também busca garantir que os restaurantes universitários (RUs) utilizem alimentos frescos provenientes de agricultores locais. Essa abordagem traz benefícios tanto para a alimentação dos estudantes quanto para o fortalecimento da economia local. “A alimentação estudantil é um dos pilares para a permanência na universidade. Os impactos financeiros da alimentação podem resultar em evasão e da mesma forma a qualidade das refeições influencia de forma direta na formação de qualidade”, afirma Mirella.

Reportagem do Joio mostrou que não há padronização no valor das refeições dos RUs pelo país e nem na quantidade de refeições fornecidas aos estudantes. Na Universidade Estadual do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), por exemplo, o custo é de R$ 3 para não cotistas e R$ 2 para cotistas, servindo almoço e jantar, sem desjejum. Já na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) o valor chega a R$15. Na Universidade de Brasília (UnB), alunos de baixa renda são isentos, mas não cotistas pagam R$ 6,10 para almoçar ou jantar.

De acordo com o Ministério da Educação (MEC), a não padronização do valor das refeições decorre de inúmeros fatores, como: os diversos modelos de gestão dos restaurantes (autogestão, mista e terceirização); a localização das universidades federais; o quantitativo de público atendido; o valor subsidiado pelos Institutos Federais de Ensino Superior (Ifes), que depende da capacidade orçamentária de cada instituição; e a composição dos cardápios .

A representante da UNE reforça, entretanto, que algumas diretrizes gerais são recomendadas pelo Ministério da Educação, como o predomínio de alimentos frescos, evitando ultraprocessados, e a garantia de que todos os estudantes, independentemente de sua condição socioeconômica, tenham acesso à alimentação adequada, além de medidas de sustentabilidade, como o descarte adequado.

Assim sendo, a ampliação da gratuidade para estudantes em situação de vulnerabilidade econômica e o aprimoramento das estruturas dos restaurantes ainda são demandas levadas pelos estudantes à UNE. A organização critica medidas de austeridade econômica, como o teto de gastos. “Resultam em retrocessos para a educação”, diz Mirella. 

Dados da plataforma Siga Brasil, do Senado Federal, acessados pelo Joio mostram que entre 2014 e 2020, por exemplo, o governo federal costumava investir R$ 1 bilhão ao ano com ações de “Assistência ao Estudante de Ensino Superior”, número que caiu para R$ 777 milhões em 2021, quando houve um corte de 23% nas medidas. Já no ano passado o governo federal gastou R$ 959 milhões em assistência estudantil universitária. 

Neste ano, o MEC afirmou que foram alocados R$ 1,27 bilhão para o Programa Nacional de Assistência Estudantil. Desse montante, R$ 1,05 bilhão já foi empenhado e R$ 754 milhões foram efetivamente pagos, conforme dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo Federal (Siop).

Segundo a pasta, das 69 universidades federais, somente a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e a Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (Ufape) não possuem restaurantes universitários. 

Mesmo com as garantias em lei instituídas pela Pnaes, os estudantes da UFLA dizem sentir que a universidade olha para suas demandas como se fizesse um “favor”. “Para eles, é indignante como a universidade gera conhecimento, produz tecnologia de ponta, e quem está ali, operando essas atividades e contribuindo, está em insegurança alimentar. Eles querem estar presentes nas decisões, serem mais ouvidos e que a universidade veja que a permanência é um direito, não um favor”, diz Abreu. 

Dentre outras medidas necessárias para garantir a segurança alimentar dos estudantes, a pesquisadora destaca a importância de bolsas sem viés trabalhista, assim como o aumento do valor da bolsa. Somam-se a isso a implementação de programas de auxílio financeiro específicos para despesas com alimentação e permanência, a ampliação das refeições (em quantidade e variedade) e o fornecimento de gás de cozinha para os alunos que vivem na moradia estudantil.

A reportagem questionou o MEC sobre as diretrizes e o prazo para a implementação do Pases nas universidades. O ministério disse apenas que as normas e os demais procedimentos necessários à implementação dos programas e das ações da Pnaes serão definidos em regulamento. 

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O que diz a UFLA

Em entrevista, o pró-reitor de Apoio à Permanência Estudantil da UFLA, Rossano Botelho, afirmou que será implementada já no primeiro semestre de 2025 a oferta do café da manhã. 

Há um estudo sobre a redução do valor pago nas refeições para alunos da graduação e pós-graduação, de R$ 6 para R$ 4 para estudantes não vulneráveis e de R$ 1 para a isenção para estudantes vulneráveis, com previsão de implementação no decorrer de 2025. “Esta ação ainda não foi implementada em razão das restrições orçamentárias impostas pelo contingenciamento e bloqueio do limite orçamentário, que impossibilita a liberação de recursos no momento.”

Dentre outras medidas para aprimorar a segurança alimentar dos estudantes ele destaca a criação da Cozinha Comunitária no Centro de Convivência (Cantina Central) do Campus Sede, “com o objetivo de garantir alternativas para a segurança alimentar e viabilizar a permanência do estudante (obras já em curso – finalização prevista para 2024). A Cozinha Coletiva do Câmpus Paraíso será implementada no ano de 2025.” 

Sobre a saúde dos estudantes, será implementada ainda neste ano uma Política de Saúde Mental. O representante da universidade ainda afirmou que será desenvolvido um Núcleo de Acompanhamento Estudantil, para implementação e gestão de políticas institucionais relacionadas ao acompanhamento do estudante, direcionando o processo educacional, com foco nas dimensões materiais, simbólicas e um Núcleo de Apoio à Educação Inclusiva. 

O Programa Institucional de Bolsas será redesenhado, assim como o Programa de Análise Socioeconômica “para que os estudantes assistidos possam acessar os programas e ações de apoio estudantil ainda no primeiro mês de aulas”.

As bolsas institucionais da UFLA, tanto para ampla concorrência, quanto para estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, “não possuem viés trabalhista”, alegou Botelho. As bolsas se voltam à atuação em atividades de pesquisa, extensão, cultura, ensino e desenvolvimento institucional, científico, tecnológico e comunitário, custeado com recursos da instituição. “Esta situação deve ser imediatamente comunicada à pró-reitoria executora do programa institucional de bolsas para verificação e providências cabíveis”, explica.

*A pedido da estudante, o nome foi alterado a fim de preservar sua identidade.

Artigod Estudantes de federal de MG sofrem com insegurança alimentar: ‘fruta, legumes e carne o dinheiro não alcança’ publicado em O Joio e O Trigo.

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