Autor de ‘Gente ultraprocessada’, Chris van Tulleken conta como teoria brasileira sobre ultraprocessados mudou sua visão sobre alimentos e como busca sensibilizar os leitores para essa questão
Chris van Tulleken quer construir pontes. O autor do recém-lançado “Gente ultraprocessada: por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-las” (Editora Elefante, 432 páginas) acredita que tudo o que ele disse no livro sobre alimentos é verdade para carros, tecnologia, jogos de azar, vaping… “Vemos oligopólios com enorme poder regulatório. Eles são transnacionais. Eles não pagam impostos. Eles causam danos ambientais. Eles têm a seu serviço equipes muito sofisticadas que fingem que estão fazendo o bem”, disse o médico e cientista britânico em entrevista ao Joio. “Estou tentando juntar essas coisas. E aqueles de nós que estudam isso devem se ver como aliados.”
Mas começar pela comida já é alguma coisa, como mostrou o sucesso do livro no Reino Unido e nos EUA, países onde foi lançado no ano passado pela editora Penguin. Agora, o best-seller está disponível para o leitor brasileiro e o autor está prestes a fazer uma turnê por São Paulo e Rio de Janeiro. “Não quero tirar a Coca-Cola de ninguém, mas precisamos de rótulos de advertência, de impostos sobre os piores produtos. E precisamos parar de vender para crianças coisas que não sejam comida usando personagens de desenhos animados”, defendeu numa manhã de sexta-feira, da sua casa em Londres, entre os cuidados com a sua filha bebê (ele tem três meninas).
O interesse de van Tulleken em alimentação começou justamente no universo das fórmulas infantis. Mas foi um artigo escrito pelo epidemiologista brasileiro Carlos Monteiro que mudou para sempre a sua trajetória ao apresentar a classificação NOVA e o conceito de ultraprocessados. “Eu estava cego para o papel do processamento industrial. E não pensava sobre isso”, relembra.
O que se seguiu à leitura do artigo foi uma ideia inusitada. Junto com os cientistas Rachel Batterham e Sam Dickin, ele desenhou um experimento que colocaria à prova (mais uma vez) o papel dos ultraprocessados na nossa saúde. Mas, porque o experimento estava sendo acompanhado pela emissora pública BBC, surgiu a ideia de ser ele a cobaia. Ele passou quatro semanas obtendo 80% das suas calorias dos ultraprocessados. “Então ser cobaia nos deu algo para filmar. Foi muito visual. E eu era fácil de estudar. Fazer isso me deu uma compreensão que não seria possível de outra forma.”
E, para nossa sorte, essa compreensão acabou sendo mesmo única. Chris van Tulleken consegue traduzir de uma forma extremamente simples e divertida o significado da classificação NOVA para a ciência sem jamais perder o rigor. E faz isso ora comprimindo bilhões de anos de história evolutiva, ora usando comparações como a da corrida armamentista, ora recontando histórias desconhecidas da Segunda Guerra Mundial, ora conversando com engenheiros da indústria de alimentos…
Você pode conferir algumas dessas ideias na entrevista a seguir.
Como você pensava em comida imediatamente antes de entrar em contato com o conceito de ultraprocessados?
Lembro de dizer à minha mãe que um hambúrguer do McDonald ‘s era uma refeição perfeitamente saudável porque tinha relativamente baixo teor de gordura. Eu me lembro disso… Na época, no Reino Unido, tinha 8,6% de gordura. E eu pensava: “então é saudável”. E comi ao longo da vida uma quantidade enorme de alimentos ultraprocessados. Me empanturrava. Eu nunca tinha lido uma lista de ingredientes. Então, número um, eu realmente pensava que o problema era só gordura, sal e açúcar – e essa é a minha formação médica falando. Nunca olhei para meus sanduíches favoritos, que compro em uma rede de supermercados como algo ruim. Eu gostava particularmente do sanduíche de camarão e maionese. E há uns 30 ingredientes nesse sanduíche de camarão e maionese. De qualquer forma, eu nunca tinha lido isso. Nunca tinha lido os ingredientes do pão de forma. Então, eu estava cego para o papel do processamento industrial. E não pensava sobre isso.
E, claro, a sua mãe discordava de você…
Bem, minha mãe é uma cozinheira maravilhosa e uma pessoa muito inteligente. Mas ela não é cientista. E ela achou muito difícil dizer por que o hambúrguer do McDonald ‘s era ruim. E eu contra-argumentava: “olha, dizem que é 100% carne bovina”. “Não são muitos ingredientes. Por que você está chateada com isso?” E, sabe, este é o poder da ciência sendo mal utilizado. A ciência é uma ferramenta incrível para vencer uma discussão. Os primeiros cientistas a sacar de verdade os alimentos foram os cientistas da indústria alimentícia. E foi só quando o grupo liderado por Carlos Monteiro começou a olhar para isso que houve uma disputa de igual para igual. Porque, finalmente, eram pessoas inteligentes, matemáticas e rigorosas defendendo a comida de verdade. E essa é a genialidade do Carlos… Ele tem sempre muito cuidado ao falar da sua equipe – e acho que foi, realmente, um esforço de equipe. Mas também acho que todos reconhecem que o Carlos Monteiro foi a peça crucial em tudo isso.
No livro, você conta que a teoria de Carlos Monteiro entrou na sua vida por conta da dica de uma amiga. Junto com o artigo em que ele explica a classificação NOVA, você também entrou em contato com um estudo muito importante para a disseminação dela, um ensaio clínico do americano Kevin Hall. Você acha que teria levado a sério as ideias do brasileiro sem o estudo do americano?
Penso que os cientistas do Norte global muitas vezes não têm o respeito pela ciência do Sul que deveríamos. E então eu acho que é uma pergunta desconfortável. Porém, os primeiros artigos de Monteiro eram uma ideia – uma ideia a partir de dados, que fique claro –, mas uma ideia que precisava ser testada. Uma boa ideia só é realmente interessante na ciência se 1) você puder testá-la; 2) ela tiver sido testada; ou 3) você a estiver testando. Então é claro que sim, isso me ajudou. Se eu apenas lesse o artigo de 2009 escrito pelo Monteiro e ninguém tivesse feito nada a respeito, eu diria, “ah, bem, isso é legal”. E talvez tivesse pensado mais sobre isso… Mas, quando os Institutos Nacionais de Saúde [instituição do governo americano ao qual Kevin Hall é vinculado] testaram… Na época, Hall já era um dos cientistas mais respeitados do mundo estudando isso – hoje talvez ele seja o mais respeitado – então, sim. Mas não foi nada do tipo “ah, são os americanos; confio mais nos americanos do que nos brasileiros”. Foi mais como se os brasileiros tivessem tido uma ideia brilhante. E havia muita epidemiologia nessa ideia, mas o experimento de Kevin Hall foi uma peça muito importante do quebra-cabeça. E, veja, agora ele é um pedaço pequeno do quebra-cabeça. Se amanhã a gente descobrisse que o Kevin falsificou todo o experimento – o que ele absolutamente não fez – isso realmente não importaria. Temos muitos outros dados. Já há também uma repetição da experiência do Kevin no Japão… Então, essa minha resposta é muito longa, mas, sem a confirmação do Kevin, me pergunto se eu teria ficado tão interessado. É uma pergunta muito justa e desconfortável que ninguém nunca me fez.
Por que você resolveu usar a si próprio como cobaia? Pode descrever o experimento brevemente?
Por duas razões. Em primeiro lugar, é a coisa mais fácil de fazer em termos éticos. Não precisei de permissão. Fazer isso com outra pessoa, seja você um cientista ou um médico – e independente da intervenção que você fizer, na verdade – iria requerer permissão. Não achei que me faria muito mal, mas não queria fazer isso com outra pessoa. Então, o que fiz foi me juntar a Rachel Batterham e Sam Dickin, meu aluno de pós-doutorado – que, aliás, concluiu seu pós-doutorado há poucas semanas – para desenhar um ensaio principal, baseado no estudo de Kevin Hall, onde analisamos o que acontece com pessoas que têm uma dieta ultraprocessada versus uma dieta minimamente processada. Em segundo lugar, estávamos filmando esse início de experimento para a BBC. Então, ser cobaia nos deu algo para filmar. Foi muito visual. E eu era fácil de estudar. Fazer isso me deu uma compreensão que não seria possível de outra forma.
E quais foram as mudanças que aconteceram com você ao final desse tempo como cobaia?
Ganhei muito peso. Seis quilos, o que é uma quantidade enorme e teria me levado a dobrar meu peso corporal em um ano. Também afetou minha resposta hormonal a uma refeição. Então, normalmente, quando você come, você tem hormônios de saciedade que sobem e hormônios de fome que descem. E, ao final de um mês de dieta, os hormônios pararam de fazer isso. Também vimos mudanças significativas em meu cérebro. Vimos muita comunicação entre as partes de hábito do cérebro, na parte posterior, e as partes de recompensa, no meio.
Mas, para mim, o principal efeito teve a ver com uma conversa que tive com Fernanda Rauber, que faz parte do núcleo do Carlos Monteiro. Essa conversa aconteceu no meio da dieta, mais ou menos. Eu estava nesta mesa, nesta sala, e ela dizia: “isso não é comida de verdade”. “Não é comida, Chris.” E então, depois, me sentei para comer meu frango frito do KFC – no livro esse momento é descrito citando outra comida, porque eu já tinha falado sobre o KFC, mas, na verdade, era o frango frito do KFC, minha comida favorita no mundo inteiro… Sentei para comer e não consegui terminar. Foi nojento. A Fernanda me deu esse presente, que foi virar algo no meu cérebro que não me deu mais vontade de comer. Como quando você deixa de amar alguém, sabe? Você está muito apaixonado e, de repente, pensa: “ai meu Deus, até sua respiração me irrita”. E foi isso que aconteceu com a comida. Então, no livro, eu tento passar isso para o leitor. A cada página, eu estou tentando ajudá-lo a não querer mais essa comida. Porque para parar de comer é preciso não querer. E, sinceramente, eu não quero comer mais nada disso.
E é uma delícia de ler, de verdade. É muito bem escrito e engraçado…
Bem, esse deve ser mérito do tradutor. Então espero conhecer o tradutor! (risos)
Minha próxima pergunta tem a ver com isso. Como cientista e divulgador científico, a forma como você transmite a classificação NOVA para pessoas que nunca ouviram falar nela é original em vários pontos. Você divide a alimentação humana em três eras, por exemplo, e ao retroceder meio bilhão de anos acaba ajudando a compreensão do real significado da ruptura trazida pelos ultraprocessados. Você explicaria brevemente cada uma dessas eras?
Basicamente a vida tem dois projetos: comida e sexo. Então você precisa de comida para alimentar o sexo – sendo minucioso, para alimentar a reprodução, já que nem todos os seres vivos fazem sexo. Mas o fato é que a primeira forma de vida na Terra teve de se haver com o problema de não ter nada para comer. Essa primeira vida teve que comer pedras e ferro e minerais; enfim, coisas que nunca estiveram vivas. Mas isso mudou com a segunda era da alimentação.
É quando a vida começa a devorar outras vidas. Então uma bactéria começa a comer outra bactéria. E o que é realmente importante sobre todos os alimentos é que eles não querem ser comidos. As plantas geralmente não querem ser comidas por animais. Os animais certamente não querem ser comidos por outros animais. Existem algumas pequenas exceções – leite materno de mamíferos, algumas sementes e nozes –, mas basicamente a comida não quer ser comida. E o que isso significa é que você teve que desenvolver um sistema muito, mas muito sofisticado para detectar comida boa, comida ruim, comida fresca, comida estragada, comida madura, comida verde, coisas que são venenosas, doces, gordurosas ou proteicas. Temos em nossas cabeças e entranhas esse sistema incrivelmente sofisticado. E os humanos são estranhos porque, além disso, começamos a processar nossa comida. Processar alimentos nos transforma em humanos. Se você tentar comer um bife cru, não conseguirá. Portanto, temos que processar nossa comida. Principalmente as mulheres inventaram a comida, o que os humanos chamavam de comida. Elas estavam moendo grãos, extraindo óleos, assando, cozinhando, picando, defumando, fermentando, salgando; todas essas coisas. E tudo isso era feito em cavernas e em cabanas, principalmente por mães e avós. E, assim, tivemos o surgimento dessa dieta incrível. Os humanos podem comer de 5 a 10 mil plantas, animais e fungos diferentes. Somos muito bons nisso. E isso também é bom pra gente: permitiu que nossos cérebros se expandissem.
Mas, depois da Segunda Guerra Mundial, nos Estados Unidos, as pessoas tinham mais dinheiro, as mulheres trabalhavam mais. E então as corporações começaram a fabricar a maior parte da nossa comida. E isso foi bom no começo em vários aspectos. Mas a corporação tem dois problemas que precisa resolver. Tem de vender mais alimentos do que a empresa contra a qual compete. E tem de tornar esses alimentos mais baratos do que a empresa contra a qual compete. E assim você tem cientistas de alimentos fazendo alimentos que são muito difíceis de parar de comer, usando os ingredientes mais baratos possíveis. E esse alimento é o que chamamos de ultraprocessados. E [as corporações] usam ingredientes que nunca encontramos antes, muitos deles totalmente sintéticos. Elas utilizam formulações que parecem tradicionais, mas na verdade são puramente industriais. E, pela lógica dessa comida que é feita com ingredientes baratos e é pensada para ser difícil parar de comer, você acaba comendo demais e ganhando peso. E esses alimentos têm um perfil nutricional muito ruim, não têm nada de toda a complexidade que deveríamos comer e que evoluímos para comer.
Então essas são as três idades da alimentação. Na primeira, se come coisas que nunca estiveram vivas. Depois, a vida você come vida. E, finalmente, voltamos a comer coisas que nunca estiveram vivas. Estamos comendo moléculas sintéticas.
Mas, agora, o propósito da nossa alimentação é diferente. E talvez esse seja o conceito crucial que Carlos e sua equipe conseguiram colocar na definição de alimentos ultraprocessados. Porque quando você cozinha para sua família, seu propósito é amor e nutrição. É tornar suas vidas melhores. É fazê-los felizes e enchê-los – você quer encher as pessoas. E o propósito dos alimentos ultraprocessados não é nos saciar. É nos fazer comprar mais. É ser viciantes. É nos fazer comer demais. E é para ganhar o máximo de dinheiro possível. Isso está no cerne do livro, é o aspecto mais importante dos alimentos ultraprocessados. Depois de entender isso, todas as outras perguntas serão fáceis de responder. É o sal? É o açúcar? Será a falta de fibra? Não. É porque o objetivo da comida é fazer com que você coma o máximo que puder.
Os críticos da classificação NOVA no Brasil tentam, desde o início, fazer do Carlos Monteiro e da sua equipe uma espécie de time de ludistas, pessoas contrárias às tecnologias de processamento de alimentos – o que não é verdade. No mesmo movimento, tentam confundir o que é um alimento processado com o produto ultraprocessado.
Eles fazem isso no Reino Unido também. “Iogurte é saudável e é um alimento ultraprocessado.” Não, o iogurte não é um alimento ultraprocessado. Iogurtes aromatizados, iogurtes com adoçantes não nutritivos e amido de milho modificado são ultraprocessados e não são bons para você. Mas o iogurte tradicional é realmente bom, saudável e cheio de nutrientes. Sim, é exatamente isso que eles fazem aqui. O processamento é importante. E é por isso que passo tanto tempo no livro dizendo isso. Os humanos devem processar seus alimentos. Mas, você sabe, historicamente foram mulheres. Sua mãe e sua avó processavam a comida de uma maneira muito, muito diferente da Nestlé, Danone, Coca-Cola, Pepsi, Kraft Heinz, Mondelez. Eles não estão fazendo a mesma coisa pelo mesmo motivo.
Pois então, você afirma que o processamento é nada menos do que “uma parte da nossa fisiologia”. Ou seja, nós não seríamos nós sem o processamento – o que me parece uma ideia poderosa para reivindicar para as pessoas algo que foi sendo terceirizado para as corporações a ponto de, hoje, a mensagem ser mais ou menos a de que ser contra essas empresas é ser contra o processamento. O que você acha disso?
As corporações são incrivelmente habilidosas. Agora estou em uma corrida armamentista [contra elas]. Bem, Carlos e sua equipe estão há décadas. Mas a indústria alimentícia diz várias coisas. Eles dizem: “bem, o processamento é importante”. Claro que é importante. É muito importante. O que não é essencial é o ultra processamento – que trata apenas de dinheiro. Podemos mostrar isso. Dizem também que é tudo uma questão de gordura, sal e açúcar e o processamento não faz nenhuma diferença. E minha resposta a isso é: se você pegar uma tigela de gordura, e outra tigela de açúcar e uma terceira tigela de sal não dá pra fazer uma boa refeição. Pra fazer comida saborosa é preciso processá-la. Portanto, o processamento é muito importante quando se trata da saúde humana e do apetite humano.
E a outra coisa que dizem é: “Chris é um misógino. Ele quer que as mulheres voltem para a cozinha. Ele odeia pessoas pobres. Ele quer que gastem todo o seu dinheiro em comida sofisticada”. Em relação ao primeiro ponto, nunca disse nada sobre o que as pessoas deveriam comer. E você pode verificar isso. Em nenhum lugar do livro eu digo “não coma alimentos ultraprocessados”. E em nenhum lugar do livro eu celebro a alimentação saudável. Eu não dou receitas. Não falo da comida deliciosa que a minha mãe fazia. No Reino Unido, é impossível que as pessoas comam bem porque é muito caro. Então sou muito cuidadoso. Não tenho opinião sobre como as pessoas devem cozinhar ou quem deve cozinhar na família. E, quando se trata de renda, temos um grande número de pessoas vivendo na pobreza no Reino Unido – e a razão pela qual elas não podem comprar comida boa é o ambiente alimentar. É o preço dos alimentos, a comercialização dos alimentos. Quem criou o ambiente alimentar? A indústria alimentícia. Então a razão pela qual as pessoas pobres não podem comer alimentos saudáveis é a indústria. E, você sabe, me enoja que, tendo criado um ambiente que prejudica o planeta e as pessoas, eles sejam muito hábeis em transformar qualquer crítica a eles em uma crítica às pessoas que são forçadas a usar seus produtos. Isso realmente me frustra.
Há um último ponto, que é que todos os alimentos ultraprocessados, mais de 99% deles, possuem níveis prejudiciais de calorias, sal, gordura e/ou açúcar. Podemos mostrar isso muito facilmente. Então, se eles querem falar sobre gordura, sal e açúcar, não tem problema. Vamos falar de gordura, sal e açúcar. Mas o que eles querem é confundir todo mundo e fazer barulho.
Totalmente. Outra chave de leitura muito particular sua – que abre o livro e se estende ao longo dele – é a da corrida armamentista. Você constrói um paralelismo entre o que seria a corrida armamentista biológica – a busca por energia que move os seres vivos, os vírus – e a corrida armamentista econômica, que move as corporações em busca de dinheiro. Pode detalhar um pouco essa reflexão?
As corporações têm como alimento o dinheiro. É o que elas precisam para crescer. E elas precisam competir. Há uma certa quantia de dinheiro circulando por aí e a minha empresa precisa vencer a sua empresa e conseguir mais desse dinheiro. E, então, é importante compreender a corrida armamentista corporativa.
Há duas coisas que acontecem com as corridas armamentistas. Elas impulsionam a complexidade. Então, quando uma empresa descobre que adicionar um sabor específico torna sua comida um pouco melhor, outra empresa adiciona esse sabor também, mas depois troca o emulsificante. E então esta empresa descobrirá como cultivar a soja mais barata, ou aquela outra começará a fazer lobby junto ao governo brasileiro para derrubar mais florestas tropicais e tornar a soja ou o milho ainda mais baratos. E, assim, as empresas devem tornar-se cada vez mais agressivas e cada vez mais inteligentes na criação de um ambiente que lhes permita vender produtos.
A outra coisa importante que uma corrida armamentista revela é que as empresas não estão no controle. Isso era algo que eu não entendia antes de começar a escrever o livro, parecia óbvio que, se envergonhássemos… a Nestlé, por exemplo, por ser gananciosa, ela poderia ficar envergonhada e ser um pouco menos gananciosa e talvez simplesmente não fizesse seus produtos subirem o rio Amazonas. Agora entendo que as empresas não são gananciosas: as empresas têm de se comportar da forma como se comportam porque os seus donos são os nossos fundos de pensões. E então o problema volta para mim.
Minha pensão está na Vanguard ou na BlackRock. E a BlackRock e a Vanguard são donas de um pouco de todas as empresas alimentícias. Mas eu preciso que [o rendimento da] minha pensão aumente. É assim que o mundo funciona.
Mas a compreensão de que as empresas não estão no controle não as torna imunes à crítica moral, apenas aponta que precisamos da regulamentação governamental. É necessário que, onde quer que você esteja no espectro político, acredite que é melhor que um governo democraticamente eleito regule uma empresa do que a empresa regule a si mesma. E o problema com estas empresas é que nós permitimos que crescessem de modo que as suas receitas são maiores do que o PIB de muitos países. De modo que as maiores empresas de alimentos, se fossem países, seriam alguns dos países mais ricos do planeta. Elas estão entre os 50% países mais ricos. Portanto, o objetivo da corrida armamentista é revelar como as empresas acabam se comportando e por que fazem isso e, ainda assim, é preciso que alguém intervenha e acabe com isso. E tem que ser o governo.
OK. Isto é difícil porque não vou entrar muito nessa discussão, mas você acredita que existe um capitalismo civilizado? Eu não sei…
Não critico o capitalismo no livro. E não o critico em público. Acho que é como criticar a gravidade. Você pode não gostar da gravidade. Isso continua nos fazendo cair. Acho que é muito possível imaginar um capitalismo mais humano, um capitalismo que não destrua o mundo. Podemos ter estruturas dentro do capitalismo que o regulem. Você sabe – e nós vemos isso na indústria aérea, por exemplo – os aviões não caem todos os dias. Na indústria farmacêutica, as empresas ganham muito dinheiro e já causaram muitos danos, mas elas não podem simplesmente nos vender veneno de cobra. Os medicamentos são testados. Então você pode imaginar um capitalismo que funcione melhor.
E, por falar nisso, Maíra, se você me disesse “bem, eu sou uma capitalista libertária de direita” eu diria que você deveria odiar esse sistema. E todas as pequenas empresas? E quanto aos mercados livres com simetria de informações? Você sabe, os mercados livres odeiam monopólios e oligopólios, e é isso que temos. Portanto, isto é muito ruim para os entusiastas do mercado livre. Uma situação onde o crescimento é atrofiado e toda a população vive com obesidade, isso é muito ruim se você quer um exército forte e um bom time de futebol. Então, eu acho que este é um debate apolítico. Existem apenas dois lados. Existe o lado da verdade, da razão, da ciência e da saúde pública – da saúde planetária. E há o lado industrial, que consiste em querer fazer o que for preciso para ganhar o máximo de dinheiro possível. Não vejo que haja qualquer política nisso. Não vejo isso como uma discussão marxista.
Você conta no livro, de forma muito delicada, como ao longo de anos você teve uma relação tensa com o seu irmão porque fazia patrulha para que ele emagrecesse. Até que você vira a chave e tudo melhora entre vocês. O livro presta o serviço de desmontar o mito da força de vontade – que também pode ser lido como “a culpa é sua” – de um jeito absolutamente baseado em evidências. Pode falar um pouco sobre esse mito em particular?
O problema com o mito da força de vontade é que quando você ganha peso parece que a culpa é sua. Essa parte do livro não foi escrita para os políticos e os médicos – quer dizer, em parte sim porque os médicos são terríveis –, mas foi escrita principalmente para pessoas que vivem com excesso de peso e que realmente acreditam que a culpa é delas. Eu coloquei minha amiga Sharon lá também porque todos nós pensamos que a culpa é nossa. Todos nós pensamos que temos muitas opções de escolha. Acho que há duas coisas principais a dizer sobre o mito da força de vontade.
A primeira é: todos começaram a ganhar peso ao mesmo tempo. Como em meados da década de 1970, grupos negros, brancos, hispânicos, homens jovens, mulheres idosas; todos ganham peso ao mesmo tempo? Nem todos ganham a mesma quantidade de peso, mas todos começam a ganhar peso. Portanto, não se pode dizer que as mulheres negras mais velhas, os homens brancos jovens e os hispânicos de meia-idade perderam todos a responsabilidade moral ao mesmo tempo. Isso é ridículo. Obviamente o ambiente alimentar mudou.
A segunda coisa se correlaciona muito bem com a pobreza. A força de vontade realmente não existe. A força de vontade é uma mistura de motivação e oportunidade. E, particularmente no Reino Unido e nos Estados Unidos, não há oportunidade para muitas pessoas comerem alimentos que levem a um peso saudável. As pessoas são forçadas a comer alimentos que geram uma ingestão excessiva de calorias. Portanto, se o único alimento que você pode comprar foi projetado por algumas das pessoas mais inteligentes do planeta para não saciá-lo e para gerar consumo excessivo, e então outras pessoas realmente inteligentes o comercializam – muitas vezes alegando que aquilo é saudável – é claro que você vai comê-lo. A força de vontade simplesmente não existe, é uma besteira que não resiste a um exame minucioso.
A razão pela qual todos ganhamos peso ao mesmo tempo é única e exclusivamente a indústria de alimentos ultraprocessados. Talvez a inatividade física seja responsável por 5%… Eu diria que há de 5% a 10% de inatividade nesse ganho, mas mais de 90% do ganho de peso da população se deve à indústria alimentícia e aos alimentos que ela produz.
E como as crianças ganham peso? As crianças são preguiçosas? Os pais, de repente, se tornaram pais piores? É simplesmente ridículo. Portanto, há apenas uma explicação para a obesidade pandêmica: os alimentos processados industrialmente. Todos os países do planeta onde a dieta passa de uma dieta tradicional para uma dieta processada industrialmente ganham peso. E temos evidências sobre os mecanismos, os aditivos, o marketing… Temos evidências incontestáveis sobre tudo isso.
E, simplesmente, a única razão pela qual isso é controverso é a indústria alimentícia e os cientistas que ela paga. Eu tenho certeza de que cada cientista do Brasil que critica [a classificação NOVA] e diz que não são os ultraprocessados o faz de má-fé. A grande maioria deles tem conflito [de interesses]. Este é o caso no Reino Unido. Todas as críticas dos acadêmicos, sem exceção, vêm de acadêmicos que são financiados pela indústria de alimentos.
Você conta muitos episódios de conflito de interesses na ciência ao longo do livro. Cientistas que vêm a público desconstruir o conceito de ultraprocessados mas omitem seus laços com as corporações de ultraprocessados. E também jornalistas. Numa certa altura, você compara esse panorama a um quebra-cabeça em que a indústria, pra confundir e fazer com que a gente não consiga chegar a uma conclusão, vai colocando peças falsas pelo caminho. Eu queria que você falasse um pouco sobre esse problema e explicasse por que você defende que a indústria de alimentos seja tratada pela comunidade científica como a indústria do tabaco.
As pessoas ficam muito irritadas quando você compara a indústria alimentícia com a indústria do tabaco. É preciso lembrar que, em meados da década de 1980, as duas maiores empresas de tabaco – Philip Morris e R.J. Reynolds – compraram as maiores empresas alimentícias do mundo – Kraft, General Foods e Nabisco – e, por um tempo, a indústria do tabaco e a indústria de alimentos foram a mesma coisa. Eles pegaram suas técnicas de marketing, suas técnicas de desenvolvimento de produtos, suas moléculas de sabor dos cigarros e aplicaram tudo isso aos alimentos. E, agora, temos evidências muito boas de que se você comer alimentos produzidos por uma empresa [com histórico] de tabaco, eles ainda serão mais viciantes do que os alimentos de outras empresas.
A Organização Mundial da Saúde está fazendo um trabalho realmente bom sobre os determinantes comerciais da saúde. E é cada vez mais claro que a principal causa de morte precoce de pessoas em todo o mundo se deve a interesses comerciais. Temos alimentos e tabaco liderando, depois vem álcool, jogos de azar, automóveis, combustíveis fósseis, plásticos… Temos um grupo de indústrias que prejudicam diretamente a saúde humana.
E por isso não é apenas importante comparar a comida com o tabaco. [A indústria de alimentos] está fazendo um produto fundamentalmente viciante, usando ingredientes ruins e muitas marcas para fisgar as crianças desde a mais tenra idade. É também muito importante entender que o mesmo se aplica à indústria do álcool, à indústria do jogo, aos carros… Basta olhar para a forma como a indústria do automóvel prejudica e afeta vidas em todo o mundo. Então tudo o que eu disse sobre comida é verdade para carros. Você poderia escrever o mesmo livro sobre carros. Você pode escrever o mesmo livro sobre tecnologia, mídias sociais, celulares, computadores. Vemos oligopólios com enorme poder regulatório. Eles são transnacionais. Eles não pagam impostos. Eles causam danos ambientais. Eles têm a seu serviço equipes muito sofisticadas que fingem que estão fazendo o bem.
Mas o tabaco é importante porque tivemos sucesso na regulação dos cigarros. Fizemos um bom trabalho nisso. E é isso que precisamos fazer com a indústria de alimentos. Não quero proibir o McDonald ‘s. Não quero tirar a Coca-Cola de ninguém, mas precisamos de rótulos de advertência, de impostos sobre os piores produtos. E precisamos parar de vender para crianças coisas que não sejam comida usando personagens de desenhos animados. Estas são demandas tímidas, tá? Uma criança simplesmente não deveria poder entrar em uma loja e comprar uma lata de ácido fosfórico, açúcar e cafeína… Uma criança não deveria poder comprá-la com o dinheiro do bolso. Não sou marxista. Não sou um comunista que quer proibir tudo ou perturbar o sistema. É que poderíamos regular essas coisas como regulamos outras coisas.
E o que você acha que precisa ser feito? Pensando no tabaco, temos a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, da OMS [Organização Mundial da Saúde]. Mas esse tipo de regulação também tem suas falhas, vemos isso agora especialmente porque a indústria está vendendo cigarros eletrônicos. Você acha que poderíamos repetir isso na comida? Ou que poderíamos fazer mais?
Sim. Quero dizer, uma das dificuldades em falar com você é que, no Reino Unido, eu aponto o Brasil, o Chile, o México, a Argentina como bons exemplos de regulação dos alimentos. Outro dia eu estava em Harvard dizendo “olhem para o México, eles têm um ótimo sistema regulatório” e um colega do México, um cirurgião, levantou a mão e disse: “sim, temos octógonos em tudo, mas ainda temos uma enorme obesidade”.
Mas, sim, acho que é possível. É possível imaginar um mundo com advertências, impostos e restrições de marketing. Mas também sei que na maioria dos países, mesmo onde existe ambição nesse sentido, ela não é muito bem aplicada. Mas, no final das contas, acho que as pessoas estão muito irritadas com isso. Então acho que vai chegar um momento em que os políticos simplesmente irão propor que as empresas paguem impostos suficientes para justificar os danos que causam, inclusive ao Tesouro. Preciso ser um pouco otimista.
Se você disser que é impossível, acho que não está necessariamente errada. Mas temos que fazer alguma coisa. E acho que a razão do sucesso deste livro na versão em inglês é porque muitas pessoas estão se conectando com algo que é óbvio. Como quando eu li o artigo do Carlos Monteiro, as pessoas leem o livro e pensam: “ah, sim, isso faz sentido”. “O que é toda essa porcaria que estão me vendendo?” Portanto, penso que há raiva e espero que a ação política siga essa raiva. E existem coisas acontecendo. Na OMS, na Opas [Organização Pan-Americana da Saúde]. Há governos nacionais regulamentando… Há um movimento público crescente, as pessoas estão falando sobre isso. Monteiro propôs a classificação em 2009 – 15 anos depois, ela está ganhando tração. E esse foi o caminho com o tabaco. Demorou 50 anos. Mas não posso acreditar que daqui a 50 anos teremos dietas piores do que as que temos hoje. Eu me recuso a acreditar nisso.
Uma medida que você não defende no livro – e achei isso polêmico pela forma como você aborda – é a taxação de ultraprocessados.
Eu mudei de ideia sobre isso…
Mas você escreveu que “Ninguém sério está propondo a taxação de ultraprocessados de que tanta gente depende” – o que não é verdade, pelo menos no Brasil. O país está regulamentando uma nova reforma tributária e a taxação de ultraprocessados foi defendida por organizações da sociedade civil, que perdeu a discussão. Você, então, mudou de ideia?
Depois de uma entrevista que dei numa rádio. Olha, francamente, não sou uma pessoa rica. Não é como se eu dirigisse uma empresa. Não tenho milhões de libras… Mas estou confortável, tenho dinheiro suficiente. Eu moro em uma boa casa. Não tenho carro, mas não preciso de mais dinheiro na minha vida. E, por isso, não quero ser um médico branco, rico e privilegiado, dizendo a todos como comer – e que me pintem como alguém que quer aumentar o preço dos alimentos para pessoas de baixa renda. Mas dei uma entrevista para uma rádio no Reino Unido e fui questionado sobre impostos. Eu disse que não, não tributaria nada disso [produtos ultraprocessados]. E Henry Dimbleby, que escreveu a nossa estratégia alimentar nacional, me enviou na mesma hora uma mensagem dizendo: “você tem que taxar a comida, porra!”. E então eu pensei, sim, claro que sim. Mas eu não tributaria o pão ou, você sabe, muitos alimentos ultraprocessados dos quais as pessoas dependem para obter calorias. Eu não tributaria feijão cozido ou peixe empanado [comidas tradicionais na Inglaterra que têm versões ultraprocessadas]. Mas tributaria o uso de açúcar, gordura e sal. Aplicaria isso com muito cuidado.
Quais são seus próximos passos? Você vai pesquisar mais sobre alimentos ultraprocessados ou quer explorar outros temas?
Meu interesse em estudar alimentação vem de 2016, comecei olhando para fórmulas infantis e, agora, estudo alimentação para adultos. Acho que estou interessado em usar livros, televisão, rádio, podcasts e entrevistas para financiar a ciência e usar essa ciência para trazer melhorias comprovadas em termos de justiça social, igualdade na saúde… Penso que estou sempre tentando encontrar uma forma de enquadrar o que é potencialmente uma crítica bastante seca ao capitalismo tardio, à falta de regulamentação. Essas coisas são facilmente politizadas. Eu quero encontrar formas de tornar estas coisas acessíveis, apelando à direita e à esquerda; apelando a todos. Então não tenho uma resposta pronta, mas estou tentando unir álcool, tabaco, alimentação, jogos de azar, automóveis, combustíveis fósseis, vaping… Estou tentando juntar essas coisas. E aqueles de nós que estudam isso devem se ver como aliados. É para que os defensores do controle do tabaco e os cientistas dessa área possam apontar para as pessoas que trabalham com alimentos e dizer: “olha o que estão fazendo, podemos aprender com isso”. E os ativistas contra o jogo possam aprender com o pessoal da comida e do tabaco. E ninguém protesta contra o setor automotivo, mas temos que chegar lá. Então, sim, vou continuar fazendo isso, mas acho que minha especialidade é em comida – e provavelmente será por muito tempo.
Artigod “As corporações têm como alimento o dinheiro” publicado em O Joio e O Trigo.
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