O crescimento de solicitações para alteração do cardápio de estudantes com diagnósticos médicos na rede pública de São Paulo tem preocupado equipes pedagógicas e de nutrição. Sempre à espreita para conquistar o público infantil, indústria de alimentos vê oportunidade para oferecer produtos ultraprocessados
O aumento de solicitações de alteração da merenda dos alunos trouxe para as escolas municipais de São Paulo um desafio para a garantia de uma alimentação adequada. Pedidos feitos por mães e pais, com a apresentação de diagnóstico médico de seletividade alimentar, têm entrado em conflito com as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira e com as diretrizes do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
Segundo fontes ouvidas pelo Joio, apenas nos primeiros seis meses de 2024 foram registradas centenas de solicitações com o diagnóstico de transtorno alimentar restritivo evitativo, conhecido como Tare, presente na CID (Classificação Internacional de Doenças). O diagnóstico é comum em crianças com o transtorno do espectro autista (TEA), consideradas neuroatípicas ou neurodivergentes — que têm alterações de aprendizado e raciocínio — ou de distúrbio alimentar pediátrico (DAP).
“Isso tem acontecido cada vez mais, tenho observado muitos laudos médicos e nutricionais com prescrição de dietas restritivas por ‘transtorno de alimentação na infância’. Às vezes não é uma criança neuroatípica, mas com laudo de outro transtorno, dizendo que ela tem que comer alimentos específicos. E entre esses alimentos específicos aparecem ultraprocessados”, afirma Ligia Cardoso dos Reis, nutricionista da Codae, a Coordenadoria de Alimentação Escolar da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.
Nutricionistas e profissionais que trabalham com alimentação escolar ouvidos pela reportagem apontam que as restrições alimentares estão ligadas ao aumento de consumo de ultraprocessados, agravado pelo isolamento no período da pandemia.
“Os ultraprocessados são a ponta do iceberg de como a gente encaminhou esse cuidado das crianças nesse período pandêmico”, aponta Shirlei do Carmo, diretora da Escola Municipal de Educação Infantil Janete Clair, no Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo.
Na época, não faltaram alertas de que a prefeitura da capital e o governo estadual não estavam fornecendo alimentação adequada, um problema especialmente para famílias que dependiam da escola para garantir a segurança alimentar e nutricional de crianças e adolescentes. Após muita pressão, o fornecimento de refeições foi substituído por uma solução insatisfatória: vouchers para compras em supermercados.
O “Guia de Orientações – Dificuldades Alimentares”, publicado em 2022 pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), aborda a seletividade alimentar. O documento traz em sua introdução um agradecimento à Danone Nutricia pela colaboração “na edição deste manual”. A exemplo de outras diretrizes editadas pela SBP, o manual passa à margem das recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira e não problematiza o consumo de ultraprocessados. Ao final de maio de 2024, uma live da Sociedade sobre alimentação para crianças em idade escolar foi transmitida simultaneamente pela plataforma de outra gigante do ramo, a Nestlé.
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Aumento de laudos nas escolas
A equipe da Codae se reuniu no início de junho com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) para planejar uma análise documental com o objetivo de avaliar o aumento de laudos com solicitação de dieta restritiva nas escolas nos últimos anos.
“A gente sabe que teve um aumento, teve um aumento significativo, mas a gente quer colocar uma lupa nesses laudos para entender de onde eles vêm, se é mais do SUS ou do setor privado”, aponta Ligia dos Reis.
O interesse em colocar lupa nos laudos parte da desconfiança de que esse cenário se intensificou após a pandemia, quando a equipe de nutrição ligada ao programa de alimentação escolar passou a ser acionada para lidar com casos de crianças que não reconhecem a alimentação oferecida nas escolas. “A criança olha um prato de arroz, feijão, salada, carne, fruta de sobremesa e não aceita. E aí a equipe fica muito preocupada porque ela não pode ficar na escola sem comer.”
Após o período de isolamento, em que as refeições deixaram de ser feitas nas escolas, os ultraprocessados ganharam terreno na rotina alimentar das crianças. Um estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) com beneficiários do Bolsa Família, mostrou que, durante a pandemia, 72% das crianças com menos de seis anos receberam alimentação insuficiente ou deixaram de fazer refeições em função da diminuição na renda de suas famílias. E 80% dos entrevistados relataram que as crianças pequenas de seus núcleos familiares comeram ao menos um produto ultraprocessado no dia anterior à pesquisa — com destaque para biscoitos e bolachas recheadas (59%), bebidas açucaradas (41%) e doces e guloseimas (21%).
Questionadas sobre os motivos que explicam a presença desses produtos na dieta, as famílias apontaram principalmente sabor (46%), custo (24%) e praticidade (17%). Outro fator apontado foi a acessibilidade, uma vez que 64% das famílias afirmaram morar perto de estabelecimentos que vendem refeições prontas e 54% próximos de lojas de conveniência, enquanto o acesso a hortas perto da casa é menor (apenas 15%).
“Nesse momento da pandemia, essas crianças não tinham onde ficar. E a gente, enquanto sociedade, não conseguiu garantir a segurança nem psicológica, nem alimentar dessas crianças. O poder de compra do país em geral caiu, então, o que fica acessível para comer? Os nuggets, as salsichas, macarrão instantâneo e pão, muito consumo de pão”, relata Shirlei do Carmo.
Para ter um panorama de como está a alimentação dos alunos em casa, a equipe escolar realiza, no início do ano letivo, um questionário socioeconômico. E uma das perguntas é: o que a criança gosta de comer? Neste ano, conta Shirlei, macarrão foi a resposta de muitas famílias. “Quando você conversa com as crianças, entende que esse macarrão é aquele lamen famoso, do pacotinho.”
Ainda em 2009, quando trabalhava como educadora em sala de aula, ela notou que alimentos comuns da sua infância não estavam sendo reconhecidos pelas crianças e, a partir dessa percepção, começou a fazer pesquisas com as famílias para entender os hábitos alimentares. A dificuldade maior, conta, são verduras e legumes. “As folhas in natura a gente percebe uma dificuldade de aceitação e também de legumes que tenham uma cor mais forte.”
Hoje como diretora, ela considera que houve avanços no diálogo sobre o tema da alimentação entre a escola e as famílias, e aponta que existe um processo na rede municipal para garantir a segurança sanitária da alimentação oferecida para cada criança. “A gente está falando de seletividade alimentar, mas a gente também está falando de restrição alimentar, de crianças que não podem ter contato com algumas coisas porque têm alergias.”
A fonoaudióloga Nathália Anastopulos, especializada em disfagia e distúrbio alimentar pediátrico, ressalta a importância de identificar quando o distúrbio alimentar apresenta sintomas graves que realmente comprometem a alimentação da criança. “Quando a criança tem ingestão inadequada e come, engasga. Come, passa mal. Chega a não aceitar vários alimentos.” E, quando, continua ela, esse distúrbio aparece associado a alguma questão nutricional.
“O TEA, por exemplo, é um ponto que preenche o critério do diagnóstico de distúrbio alimentar pediátrico. Então, se a criança com autismo só se alimenta da mesma fórmula, da mesma mamadeira, do mesmo sabor feito na mesma panela, isso é do espectro.”
O que é seletividade alimentar?
Apesar de ser um diagnóstico clínico, a seletividade alimentar das crianças está relacionada, em grande parte dos casos, aos hábitos de alimentação das famílias ou a fases nesse processo de aprendizagem da criança.
A seletividade alimentar integra um quadro mais geral de dificuldades alimentares enfrentadas pelas crianças, que incluem outros transtornos alimentares. Todos esses transtornos aparecem na CID como “distúrbio alimentar pediátrico”, termo que funciona como guarda-chuva para diferentes tipos de dificuldade alimentar.
“Eu posso ter uma criança que tem alguma questão biológica de deglutição ou com neofobia alimentar, que é o medo real de um alimento novo. Tem várias frentes. A seletividade alimentar é só uma delas, quando a criança recusa alimentos diversos. Ela tem um cardápio, tem uma aceitação mais restrita, mas isso pode ser natural ou da idade”, aponta Carla Massuia, que atua com foco na alimentação de gestantes, bebês e crianças há 14 anos – 11 deles em escolas.
Esses diferentes quadros de dificuldade alimentar são mais comuns a partir dos dois anos de idade, quando, como parte do processo de formação neurológica, a criança passa a selecionar mais os alimentos. “As crianças de desenvolvimento típico, 70% delas hoje têm alguma neofobia alimentar. Quando chega na faixa etária de um ano e meio, dois anos, começam a ter uma rigidez de comportamento alimentar”, aponta Denise Lellis, pediatra com 20 anos de atuação no atendimento a crianças, adolescentes e familiares.
Lellis tomou como base a pesquisa A practical approach to classifying and managing feeding difficulties (Uma abordagem prática para classificar e gerenciar dificuldades de alimentação). O estudo, conduzido por Benny Kerzner, aponta que 75% dos casos reportados são uma percepção equivocada dos pais, 20 a 24% dos casos envolvem dificuldades leves como a seletividade alimentar e 1 a 5% dos casos configuram dificuldades alimentares graves.
As complicações podem acontecer a partir dessa idade principalmente em situações em que a criança teve um cardápio restrito. Essas situações, porém, não configuram uma regra.
“Esses casos podem acontecer e não necessariamente acontecem no início da vida alimentar. Eles vêm se estabelecendo de acordo com o comportamento da família, de acordo com a forma como essa família vai encarando. É uma seletividade que começa de uma forma natural, mas ela se agrava”, diz Massuia.
Em um dos casos que acompanhou, uma criança vinha recebendo alimentação com variedade, de forma natural e, a partir de um ano, começou a recusar determinados alimentos. Quando acontecia a recusa, os pais imediatamente ofereciam outra opção, até obter o aceite da criança. “Recusava a comida, vinha banana, recusava a comida, vinha biscoito. E assim foi se criando uma situação um pouco mais difícil”, conta Massuia. Quando chegou aos dois anos de idade, a dieta da criança estava restrita a arroz, feijão e banana.
Para Denise Lellis, a interferência dos responsáveis, muitas vezes, acaba transformando uma dificuldade natural da criança em um transtorno alimentar mais grave. “Os pais não permitem que a criança viva este momento de recusa. A recusa alimentar faz parte do desenvolvimento infantil. Precisaria acontecer de uma forma mais natural, mais respeitosa. A criança precisa recusar o alimento que ela acha arriscado. Ela precisa ter direito de sentir isso e sentir um pouquinho mais de fome para poder comer mais depois.”
Nathália Anastopulos aponta que a geração de mães e pais de hoje já foi criada com hábitos alimentares influenciados pela indústria de alimentos na década de 1990. “Os próprios pais têm desafios alimentares, são automaticamente seletivos, são restritivos com a alimentação e depositam toda a expectativa no desenvolvimento da criança. Tem-se a ideia de ‘eu não faço, mas o meu filho tem que fazer’.”
Ultraprocessados e hiperpalatáveis
É no momento da recusa que os ultraprocessados tentam ganhar terreno, impulsionados por estratégias de marketing. O problema mais grave, apontado pelas profissionais ouvidas pelo Joio, é a hiperpalatabilidade desses produtos, ricos em sal, açúcares, gorduras e aditivos.
Como mostra o Estudo Nacional de Nutrição e Alimentação Infantil, os ultraprocessados chegam a quase 30% das calorias consumidas por crianças de dois a cinco anos.
“A gente já sabe que a associação de açúcar e gordura modula o paladar. Nada vai ser tão prazeroso, especialmente para as crianças, que percebem mais o sabor doce. Com a liberação de dopamina, todo o resto da comida fica menos interessante. Tem um apelo químico, inclusive”, aponta Carla Massuia.
A nutricionista observa, nos casos que recebe em seu consultório, que a seletividade alimentar nas crianças está cada vez mais atrelada ao consumo de ultraprocessados. Ela já acompanhou casos em que a criança só comia frango empanado de determinada marca e fazia refeições à base de macarrão instantâneo, frango empanado e catchup.
Até os dois anos de idade, fase considerada de introdução alimentar para as crianças, ela observa que ainda existe um cuidado maior dos pais com os alimentos que estão sendo oferecidos. Na medida em que essa criança cresce, a refeição com ultraprocessados se torna mais presente. “Já recebi crianças que a base alimentar era de ultraprocessados. Em toda a alimentação dessa criança não entravam frutas, verduras, legumes, às vezes nem arroz, muito menos feijão ou carne ou ovo. Nada disso.”
Denise Lellis também observa um aumento dos casos de crianças com seletividade alimentar que chegam ao consultório, que ela classifica como uma “queixa comportamental”, cujo principal motivo é a presença de ultraprocessados e alimentos hiperpalatáveis muito cedo na vida das crianças.
“Isso faz a criança criar um paladar muito enviesado para coisas muito saborosas. Aí as crianças param de aceitar os alimentos in natura, o que cria uma queixa de dificuldade alimentar, já que as escolas oferecem lanches e refeições com alimentos in natura e a criança não come lá, porque não tem o que ela quer.”
Ao trazerem uma padronização do sabor, esses alimentos criam um território familiar para o paladar da criança e dificultam o processo de aprendizado que prevê a descoberta de novos sabores.
“A criança sabe exatamente o que ela vai encontrar e ela já tem essa propensão do medo do novo”, aponta Ligia Reis. Essa previsibilidade do sabor proporcionada pelos ultraprocessados não será encontrada nos alimentos in natura, minimamente processados ou em preparações culinárias oferecidas nas escolas. “Não vai trazer essa padronização porque o macarrão à bolonhesa feito por mim, hoje ele é de um jeito, amanhã é de outro. Então, imagina com pessoas diferentes cozinhando, ingredientes diferentes, temperos diferentes. Realmente fica desigual ”, explica.
Artigod ‘Herança’ da pandemia, exigência de ultraprocessados por crianças coloca rede de ensino público em sinuca publicado em O Joio e O Trigo.
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