O povo brasileiro precisa deixar de comer picanha? 

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Quais são as barreiras e desafios para se pensar a redução de consumo de carne como mitigação do colapso climático em um país que vive às sombras da insegurança alimentar

Quando resolveram parar de comer carne, os gêmeos Eduardo e Leonardo Santos esbarraram na  resistência de amigos e familiares. Uma dessas reclamações marcou os irmãos justamente por exemplificar um recorte menos comum na  mudança de hábito alimentar. “Pô, eu ralei a vida toda e agora que a gente consegue colocar carne no prato, cês querem tirar?” questionou, o incrédulo padrinho de Eduardo, José Aparecido, homem negro que trabalhou como motorista de ônibus e permaneceu semianalfabeto até o fim da vida.

Os gêmeos estão por trás do Vegano Periférico, página que cria conteúdo para um veganismo “popular, horizontal e acessível”. Eles viviam no Conjunto Habitacional Parque Itajaí, na periferia de Campinas, interior de São Paulo, e eram funcionários do McDonalds quando  – por meio de pichações  – Eduardo teve o primeiro contato com a causa vegana. Em 2015, após ser demitido da rede de fast food por protestar contra as condições de trabalho  – seis meses depois de ganhar um prêmio como melhor gerente de balcão do país  – Eduardo iniciou a transição alimentar. 

Dois anos depois, Leonardo passou a seguir os passos do irmão e após alguns meses, eles criaram a página que hoje reúne mais de 300 mil seguidores. “Começamos com a ideia de mostrar que era possível ser da periferia e deixar de comer carne”, conta Eduardo, destacando a situação de extrema pobreza em que a família vivia até então. “Nossa casa não tinha reboco na época, eu nem tinha celular”, lembra. 

Se diferenciar do que chamam de “veganismo liberal” se tornou chave do conteúdo dos gêmeos, explica Leonardo. “Quando você é de classe média é mais fácil dizer que os outros têm que parar de comer carne, você já comeu de tudo, aproveitou o que tinha que aproveitar”, afirma, criticando aqueles que “apontam o dedo achando que tudo se muda individualmente”. 

Os gêmeos são os criadores do “Vegano Periférico”. Foto: Reprodução Vegano Periférico

Se, no início, o sofrimento animal era a principal causa defendida pelos irmãos, eles logo passaram a entender os impactos socioambientais da cadeia de carne, principalmente a bovina. O setor “mudanças de uso da terra e floresta”, que se refere principalmente ao desmatamento de biomas, e o setor “agropecuária”, foram responsáveis por 74% das emissões brutas de gases de efeito estufa do Brasil em 2023. Dados publicados pelo Observatório do Clima no dia 7 de novembro mostram que a agropecuária teve uma elevação de 2,2% nas suas emissões em 2023, “devido principalmente a mais um aumento do rebanho bovino”. Um relatório do Mapbiomas publicado em outubro deste ano revelou que mais de 90% do desmatamento da Amazônia tem como objetivo a abertura de pastagens para criação de gado.

O protagonismo do setor tem se refletido em recomendações internacionais de redução de consumo de carne como política de mitigação do colapso climático. Mas é desafiador pensar nessa política em um país que, muito recentemente, de acordo com relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), teve queda de 85% nos seus índices de insegurança alimentar severa, após voltar a integrar seu Mapa da Fome em 2022. Diante desse cenário, deveria a população brasileira sequer pensar em reduzir a carne do prato?

O debate é lodoso, ou como caracterizam os gêmeos Santos, uma “areia movediça”. Envolve pântanos e desertos alimentares,  regiões nas quais o acesso a alimentos ultraprocessados é predominante e o acesso a alimentos in natura é dificultado; o conceito de monotonia e variedade alimentar; o forte lobby do agronegócio e, principalmente, um aspecto cultural refletido na promessa  de campanha que elegeu ao atual mandato o presidente que se tornou a cara do combate a fome no país: o povo brasileiro vai voltar a comer picanha. 

O Joio e O Trigo mergulha no tema a partir de um dado inédito: todas as faixas de renda no Brasil consomem, sim, excesso de carne vermelha (bovina e suína). A pesquisa foi apresentada pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo (USP) em reunião do G20 realizada em junho. Ela parte de um cruzamento dos dados de consumo da última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicada em 2018, com estimativas de um consumo de carne vermelha que atenda necessidades nutricionais e seja sustentável. Uma nova edição da POF está em andamento e será concluída em 2025.

De acordo com a bibliografia internacional, o limite menos restritivo  seria o de consumo de 70 gramas de carne por pessoa, por dia. Tendo esse limite em conta, os dados mostram que 34,29% da população mais pobre do país (com renda per capita até R$476) consomem carne em excesso. Quando considera-se o grupo mais rico do país, a porcentagem sobe para 44%. 

O epidemiologista Eduardo Nilson, pesquisador do Nupens e da Fiocruz, revela que o resultado surpreendeu a equipe de pesquisadores. “Nós sabíamos que teríamos um grau de excesso, mas esperávamos que a diferença entre rendas seria maior”, revela.

Embora a conclusão do estudo aponte para a necessidade de redução de consumo em todas as classes sociais, os dados também mostram que a maior parte da população brasileira não consome carne em excesso. “A ideia seria mudar um padrão alimentar para quem consome em excesso, prevendo não exatamente deixar de comer, mas comer até esse limite, realocando o excesso desse consumo para outras fontes de proteína”,  explica o pesquisador.

Considerar uma mudança de hábitos para a população mais vulnerável à insegurança alimentar pode parecer um contrassenso. O ativista Eduardo Santos lembra o quanto “não mexer no prato do povo” é praticamente uma palavra de ordem de pensadores sociais brasileiros, ainda que, ele destaca, populações periféricas sejam as que mais “sofrem com as mudanças climáticas”. 

Mas a redução do consumo de proteína animal, particularmente carne vermelha, já vem sendo indiretamente pautada há pelo menos uma década no país, justamente dentro da perspectiva do combate à insegurança alimentar e da garantia de uma alimentação de qualidade. 

Estudos indicam que a alimentação dos brasileiros possui uma baixa inadequação de proteína, ou seja, praticamente não há déficit no consumo desse nutriente. Isso porque, para além da proteína animal, nossa alimentação é baseada em alimentos vegetais de alto índice proteico, como o feijão. Em oposição, a alimentação das famílias brasileiras ainda possui deficiências graves em vitaminas, minerais, fibras e carotenoides.

Isso resulta na  chamada “monotonia alimentar”, uma alimentação que se baseia em pouca variedade de alimentos. Combater a monotonia alimentar, principalmente entre as classes mais baixas, tem sido a principal aposta de organizações que atuam tanto pela garantia da segurança alimentar quanto em defesa de sistemas alimentares mais sustentáveis. E a carne é um dos principais ingredientes dessa receita. 

O papel da carne na monotonia alimentar

Leonardo Santos ficou perdido no início de sua jornada no veganismo. Diferentemente do irmão, o ativista não fez uma transição de hábitos alimentares: após algumas horas assistindo documentários sobre a indústria da carne, ele dormiu onívoro e acordou vegano. Esse despertar envolveu uma primeira ida ao mercado bastante confusa: sua primeira compra vegana consistiu apenas em couve, alface e tomate. Hoje ele se diverte com a lembrança. 

“Descobri um mundo que mudou completamente minha forma de olhar para o prato”, revela. Antes, Leonardo praticamente não consumia vegetais. “Eu tinha um problema alimentar muito grande, minha alimentação era monótona e cheia de ultraprocessados”. Sua mudança de hábitos veio no rastro de alguns problemas de saúde, como dores frequentes no estômago. Hoje, suas refeições saltaram de três para uma média de dez ingredientes, “são muito mais coloridas”. 

O epidemiologista Eduardo Nilson destaca que a carne, ao lado dos ultraprocessados, é um componente importante na redução da diversidade da dieta. “A população de menor renda ainda é a que mais consome alimentos in natura e minimamente processados, mas sem muita diversidade”. Ele explica que um marcador de classe na alimentação da população brasileira é o consumo de frutas e verduras, com exceção da cebola e do alho, usados como tempero, a população de mais baixa renda é a que menos consome esses alimentos. 

Os dados da POF indicam que apenas dez produtos concentram mais de 45% do consumo alimentar brasileiro, e entre eles há três proteínas de origem animal: carne bovina, carne de frango e leite. 

Diante dos déficits nutricionais na população, combater a monotonia alimentar é um dos principais objetivos do atual Guia Alimentar para a População Brasileira, documento do Ministério da Saúde que completou dez anos em 2024. Os princípios do Guia recomendam uma alimentação in natura ou minimamente processada, em grande variedade e predominantemente de origem vegetal como base da alimentação. 

Juliana Tângari, advogada e diretora do Instituto Comida do Amanhã, organização que defende a transição para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis, destaca que, ainda que o guia não oriente diretamente a redução do consumo de proteína animal como uma política pública, há a orientação do consumo moderado de carne vermelha como consequência de uma alimentação mais variada e sustentável. “A redução do consumo de carne está misturada com a discussão de ampliação da diversidade alimentar, é por aí que a gente tem que discutir”, afirma. 

O Guia também alerta para o risco de doenças associadas ao consumo excessivo de proteína de origem animal, por apresentarem “elevada quantidade de calorias por grama e teor excessivo de gorduras não saudáveis, características que podem favorecer o risco de obesidade, de doenças do coração e de outras doenças crônicas”. O Nupens destaca também o risco de excesso de sódio e insuficiência de fibras associado ao alto consumo do alimento.

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Uma cultura alimentar fabricada

A monotonia alimentar nem sempre caracterizou a dieta brasileira. Segundo Tângari, que presidiu o Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio de Janeiro (Consea-Rio), essa perda de diversidade tem início na segunda metade do século 20, em um movimento conjunto de incentivo por uma alimentação mais rápida e desprestígio do alimento local.

 A nutricionista Fernanda Marrocos, pesquisadora da Cátedra Josué de Castro da USP, explica que essa transição nos padrões alimentares segue o rastro da Revolução Verde, período de “modernização” dos sistemas tradicionais de cultivo do Sul Global, financiado pelo governo estadunidense, por meio do avanço da monocultura, do uso de insumos e da mecanização.

Como consequência, explica Marrocos, “a partir da década de 1970, vemos um crescimento bastante significativo tanto do consumo de produtos de origem animal quanto de ultraprocessados, e como efeito, deixa-se de consumir uma variedade de leguminosas e outros alimentos mais tradicionais”. O processo veio acompanhado da construção de um mito transformado em paradigma científico, mas já questionado por nutricionistas há pelo menos 50 anos  e analisado pelo Joio no podcast Prato Cheio: a narrativa de uma necessidade infinita de proteínas.

Por meio desse suposto paradigma, construído para que países do Norte Global escoassem sua superprodução de proteína de origem animal, a ideia da “deficiência proteica” como principal causa da fome global ganhou força e ainda segue botando ovos. “Na verdade é uma visão colonialista de que as pessoas comem errado e precisam importar suprimentos proteicos ao invés de garantir uma soberania alimentar”, explica Marrocos. Segundo a pesquisadora, a narrativa segue dando o tom das discussões globais mesmo nas agendas climáticas, ainda que não haja, de fato, um déficit proteico na dieta brasileira.  

Pode parecer estranho, no país do churrasco, conceber o consumo de carne vermelha como um impacto colonial sobre culturas alimentares. Algumas regiões do país, porém, ajudam a ilustrar essa relação. Se a produção de carne bovina brasileira supre prioritariamente o mercado doméstico  – 80% da carne produzida fica no país e  as regiões que lideram esse consumo são justamente aquelas que se destacam na produção pecuária. Em alguns casos, são regiões de colonização mais recente por meio de fronteiras agrárias.

Os dados da POF indicam que as populações de estados da região centro-oeste (Mato Grosso do Sul e Goiás) e do Rio Grande do Sul são as que mais gastam com carne bovina. Porém, alguns estados da Amazônia Legal também despontam como grandes consumidores do alimento, entre eles o Pará, o Tocantins, o Acre e o Amapá. 

Estados da região centro-oeste e do Rio Grande do Sul são os que mais gastam com carne. Foto: Juliano Ribeiro / Governo do Tocantins

A historiadora da alimentação Sidiana Macêdo, professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), destaca a ampla variedade de culturas alimentares amazônicas, mas explica que muitas regiões do Pará dependem de proteína advinda de pescados e quelônios. Os dados da POF indicam uma liderança absoluta de estados amazônicos no consumo de peixes frescos.

 “É um estado que historicamente teve forte manutenção de vínculos alimentares ancestrais. A primeira proteína que a gente dá para nossas crianças ainda hoje é pescada branca, por exemplo. O consumo de carne é historicamente relacionado às pessoas de maior poder aquisitivo”, explica.

No entanto, Macêdo analisa como a disponibilidade da carne bovina tem impactado a cultura alimentar de municípios paraenses nos últimos 20 anos. “Há uma mudança de hábitos principalmente por parte dos jovens, que preferem a carne ao peixe, por ela ser mais fácil e rápida de preparar e consumir”. Ela destaca também a influência de migrações associadas à “chegada de fazendas” nessa mudança de hábitos.

O preço das proteínas de origem animal também é um determinante nessa mudança. Enquanto municípios com criação de gado costumam ter uma oferta mais barata de carne, os peixes têm se tornado produtos mais caros. “Existe uma valorização dos pescados relacionada à ideia de serem mais saudáveis”, explica a historiadora.

O custo da carne no prato

De um questionável paradigma científico, passando pela necessidade de escoamento da produção, hoje a presença da carne na refeição diária é praticamente obrigatória para a maior parte dos brasileiros. Mais do que isso, se tornou um símbolo de status daqueles que, como o padrinho de Eduardo, trabalham duro para arcar com o churrasco do final de semana. “Quando tratamos de carne na periferia, a gente tá falando de um produto com carga simbólica muito grande”, analisa o ativista.

Seu gêmeo, Leonardo, conta que cresceu associando “comida” com “açougue”. Em certa ocasião, lembra que sua mãe abriu o congelador e reclamou que “não tinha comida em casa”. “Eu fui ao açougue e minha mãe ficou super feliz. Aquela costela de porco no congelador dava a sensação de ter comida na mesa, era status. Se a gente não conseguia comprar a carne vermelha, tentavamos o frango, e se não dava, comprávamos ovo ou salsicha”, explica. 

Eduardo complementa, lembrando de outro caso que exemplifica a educação alimentar da família. Um dia, diagnosticado com Covid-19, ele delegou à mãe a tarefa de fazer o seu mercado. Com R$200, ela comprou a base da dieta do ativista. “Tinha tudo que eu precisava, mas para ela foi uma compra vazia”. Sua mãe voltou ao mercado e gastou mais R$400 em uma compra repleta de proteína animal e ultraprocessados. “Nuggets, carne vermelha, frango, bolacha, salgadinhos, algumas coisas que nenhum de nós comemos”, mas que, segundo ela, havia uma “necessidade de olhar para elas no armário”.

Os dados da POF revelam que as despesas com carne bovina representam a maior parcela de gastos com alimentação da população brasileira. Em 2018, elas variavam de R$21,14 mensais para as famílias mais pobres até R$93,91 para as mais ricas, uma média de R$40,84. Nos últimos anos, o preço da carne bovina cresceu consideravelmente. Em 2020, durante a pandemia, a inflação do produto cresceu 15,04%. Em setembro de 2024, foi registrada a maior variação desde então, alcançando 2,97%. As despesas com carne de frango e pescados ocupam as próximas posições no ranking da alimentação brasileira.

De acordo com Eduardo Nilson, devido ao valor agregado da carne, a opção por seu consumo acaba impedindo a compra de uma maior variedade de alimentos  pela população de menor renda. “As pessoas acreditam que estão consumindo um alimento muito mais nutritivo e que vale a pena investir mais nele”, analisa.

Enfrentar o simbolismo da carne enquanto referencial de “comida na mesa”, porém, segue um desafio. Segundo Walter Belik, economista e diretor do Instituto Fome Zero, a carne bovina é um dos produtos com maior elasticidade-renda entre as despesas do brasileiro.  Ou seja, quanto mais dinheiro ganha, mais o consumidor aumenta seu consumo de carne. 

“Há esse status ligado ao consumo da carne. Mudar essa cultura não é simples. É necessário um trabalho de reeducação alimentar sério apresentando alternativas de diversificação”, aponta o economista. Para Belik, ainda é importante democratizar ao máximo o acesso à carne in natura, “não podemos ter uma visão elitizada”. 

A fala do economista dialoga com outro algoz de uma alimentação variada: os produtos ultraprocessados. Seu consumo vem crescendo exponencialmente entre a população de baixa renda, e como fica evidente na memória de Leonardo Santos, carnes ultraprocessadas com frequência entram como substitutivo na dieta de famílias periféricas. Os dados da POF indicam que, em 2018, o consumo de salsicha era 167% maior no quarto populacional mais pobre do que no quarto mais rico.

Além de substitutivo financeiro, o consumo de embutidos revela outro fator que contribui para a monotonia alimentar e dificulta a construção de uma dieta menos dependente de produtos de origem animal:  a  falta de acesso a produtos in natura, como vegetais e frutas, como resultado de problemas de distribuição nos chamados pântanos e desertos alimentares.

Os gêmeos Santos avaliam que, embora não tenham passado por uma dificuldade de acesso na periferia onde cresceram, onde há quitandas e até uma horta comunitária, eles consideram a questão como um importante recorte que dificulta a mudança de hábitos alimentares entre a população periférica. “Se a pessoa precisa andar 5km para comprar um vegetal, ela é impedida de ter uma alimentação saudável. Isso é político, estrutural”, conclui Leonardo.

Em 2018, o consumo de salsicha era 167% maior no quarto populacional mais pobre do que no quarto mais rico. Foto: AdobeStock

Lobby agropecuário emperra políticas de redução de consumo 

Apesar dos desafios para se pensar a redução do consumo de carne no Brasil, o assunto tem estado cada vez mais presente  na sociedade civil. Mas ele ainda não foi refletido no Estado brasiliero. Até hoje, as únicas políticas em relação ao tema foram implementações estaduais e municipais da campanha “segunda sem carne” na alimentação pública. 

O Joio questionou o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) sobre iniciativas ou políticas públicas federais que tratem da questão.  O MAPA respondeu que não há qualquer proposta de política pública nesse sentido. “Ao contrário, o consumo de proteína animal, especialmente carnes, é reconhecido como essencial para a nutrição humana. O MAPA foca em fomentar o abastecimento de alimentos de forma segura e acessível à população brasileira”. Em relação às medidas mitigatórias para colapso climático, o Ministério respondeu que coordena há 14 anos o Plano de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono (Plano ABC+) para “promover a alta eficiência produtiva na pecuária” que, segundo eles é, impulsiona a fixação de carbono no solo. Leia aqui a resposta na íntegra. O MMA não respondeu aos questionamentos do Joio.

De acordo com Fernanda Marrocos, havia uma grande expectativa de que o Brasil fosse protagonista do debate da transição para sistemas alimentares mais sustentáveis durante o G20 e a COP-30, eventos de cooperação multilateral que terão sede no país entre 2024 e 2025. Porém, essa expectativa foi “sendo apagada por muitos entraves”. 

“O debate da fome e da insegurança alimentar veio novamente com muito peso”, afirma. Ela reitera a importância do tema, mas analisa que ele é cooptado pela narrativa do agronegócio. “A retórica da insegurança alimentar pode ser muito conveniente para o setor, é alinhada a muitos interesses”, afirma.

Marrocos destaca que o poder legislativo é o principal palco de resistência ao avanço da transição para uma alimentação menos dependente de produtos de origem animal e ultraprocessados. Essa resistência tem emperrado políticas públicas orientadas pelo Guia Alimentar para a População Brasileira. “O Guia traz essa mudança de paradigma sobre o consumo excessivo de proteína, mas a gente esbarra no lobby das indústrias e do agronegócio no Congresso”, diz.

Um exemplo desse entrave foi o debate sobre a reforma tributária em relação à cesta básica. Embora o decreto da Nova Cesta Básica, publicado em março deste ano, siga as recomendações do Guia, a bancada ruralista conquistou de última hora, no último mês de julho, a redução de alíquota de imposto para carne bovina na cesta básica. A decisão é considerada a que mais pesa na alíquota padrão que deve resultar da reforma tributária. 

Segundo Lorenza Longhi, especialista em saúde pública do Instituto de Defesa dos Consumidores (IDEC), a força política do setor agropecuário impacta a impossibilidade de a população seguir as recomendações do Guia Alimentar, reduzindo o consumo de carne e diversificando as fontes de proteína. 

“O que é mais produzido? O que tem nas gôndolas, nas feiras e mercados? O que os bancos públicos e o Plano Safra incentivam? São apenas essas mesmas quatro ou cinco commodities que o Brasil promove”, reflete.

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Acomodações de uma mesma indústria 

Não é apenas o combate à monotonia alimentar que encontra barreiras no lobby da indústria da carne. O próprio debate de alternativas sustentáveis ao consumo de proteína animal tem sido monopolizado pelo setor. Nos últimos meses, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) tem debatido o boom das proteínas plant based no mercado brasileiro. O IDEC, que tem uma cadeira no conselho, destaca a falta de regulação desses produtos, questionando sua sustentabilidade, uma vez que muitos são ultraprocessados derivados da mesma cadeia agropecuária.

“É um mercado que está crescendo exponencialmente, sendo que muitas vezes as mesmas indústrias de carne criam linhas plant based também baseadas na cadeia de commodities, na soja, no milho, com uso de aditivos e corantes”, explica Longhi. Para ela, os plant based são, mais uma vez, uma “uma acomodação da indústria da carne”. 

Em junho, o IDEC lançou a campanha “ninguém te conta, mas você sente” para defender uma ação que considera mais relevante do que os plant based para a redução dos impactos socioambientais da indústria da carne: a rastreabilidade, ferramenta que possibilitaria mapear a origem da carne bovina e coibir a criação de gado em áreas de desmatamento ilegal. 

Não existe, atualmente, uma legislação que obrigue a informação da origem da carne bovina nas embalagens desses produtos. Segundo dados de uma pesquisa encomendada pelo IDEC, 95% dos consumidores afirmam que levariam em consideração esse dado caso ele fosse disponibilizado. 

A rastreabilidade bovina ainda é mínima no Brasil. Em maio, o MAPA criou um grupo de trabalho para discussão do tema, com participação de setores públicos e privados. Dois meses antes, um grupo formado por representantes da cadeia produtiva da carne, a Mesa Brasileira de Pecuária Sustentável, havia apresentado ao ministério uma proposta de Política Nacional de Rastreabilidade Individual Obrigatória. O Joio questionou o ministério sobre os avanços da discussão, mas não obteve resposta.

Assim como na indústria plant based, o protagonismo da indústria da carne nesse processo, bem como iniciativas privadas de rastreabilidade, têm preocupado a sociedade civil. “A ideia é que a mesma empresa tenha a carne, a carne carbono zero e o produto plant based. Para nós, seria muito contraproducente ter um grupo de empresas definindo essas informações”, afirma Longhi.

Mesmo que a rastreabilidade bovina coiba o desmatamento ilegal, os dados do Nupens trazem uma conclusão que mexe diretamente nos interesses do agro: são necessárias mudanças na própria forma de produção da carne, envolvendo modelos como a chamada pecuária regenerativa, que traz práticas focadas na recuperação do solo e restauração de sua biodiversidade. 

No entanto, segundo Eduardo Nilson, práticas sustentáveis não dariam conta de suprir o atual consumo de carne vermelha pelos brasileiros.  A necessidade de um limite para esse consumo envolve uma questão inevitável: a redução de rebanho. “Em algum momento a gente vai ter que passar por essa discussão. Não há como se produzir de forma sustentável a quantidade de carne bovina consumida hoje pelo brasileiro”, pondera. 

Se a solução para a substituição da carne está em uma saudável variedade alimentar já defendida há anos pelo documento que orienta políticas públicas para a dieta brasileira, resta ao Estado enfrentar obstáculos apresentados pelo setor agropecuário. Mas isso parte também de um combate ao receio histórico da sociedade civil em se debater os impactos do consumo excessivo da carne.

Segundo Eduardo Santos, democratizar esse debate é o maior objetivo da Vegano Periférico, tendo sido estimulado inclusive por uma fala daquele que solidificou o simbolismo da picanha como enfrentamento à fome. Em 2023, Santos e outros ativistas dos direitos animais se encontraram com Lula durante a campanha presidencial.

“Ele disse que a gente precisava fazer essas informações virarem conversa de bar, porque para que algo fosse feito politicamente, era preciso uma aceitação social”, lembra. Assim, para os gêmeos, popularizar o tema envolve sim debater o consumo de carne pela população periférica, porém, fazendo-o com a população periférica, ao invés de utilizá-la como boi de piranha do combate às mudanças climáticas.

Artigod O povo brasileiro precisa deixar de comer picanha?  publicado em O Joio e O Trigo.

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