Lula, os fiscais do Sarney e um fim de ciclo que nunca termina

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Crise dos preços ilumina descolamento do governo em relação à realidade e o ocaso de um projeto que não dá conta nem mesmo daquilo que costumava ser sua especialidade. Diagnóstico errado aponta para futuro desanimador e ruim

Escrevo esse texto com um sabor amargo dominando cada canto da boca. Infelizmente, não é o amargo do café, esse pó precioso do qual devemos nos acostumar a extrair apenas o cheiro e umas gotas ao despertar. Minha dor é escrever que, apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos, e vivemos pior que nossos pais. 

Feito açaí com peixe, esse sabor é uma mistura de muitas coisas. Mas, à diferença do prato, nenhuma delas é gostosa. Sinto espanto com as recentes declarações do governo Lula sobre inflação. Desânimo por não ver saída à frente. Angústia com o que nos espera nas eleições de 2026. 

Sério, Lula, que o governo não tem uma resposta minimamente sólida sobre o problema do preço dos alimentos? Ao longo dos últimos 15 anos, nossas expectativas quanto àquilo que se poderia esperar de qualquer governo, e particularmente dos governos do PT, foram sendo sucessivamente rebaixadas. Mas a crise desencadeada pela inflação cruzou uma linha mental que eu nem sequer sabia existir. 

Se não nos vale para discutir a sério uma questão simples e central, de que nos vale um governo do PT? Sim, é plausível e necessário argumentar que, sem Lula, será muito pior; que, bem ou mal, encontramos espaços de diálogo dentro do governo; que há oportunidade para discutir algumas políticas públicas que certamente seriam atropeladas por qualquer Bolsonaro que se apresente. Mas esse é um piso muito rebaixado. Mesmo para um período no qual nossa esperança foi parar pra baixo do pré-sal. 

Sabíamos que seria um mandato lulista amarrado pelo Centrão. Que o orçamento é pequeno diante do problema. Que o Estado está desmantelado. Mas qualquer um de nós poderia esperar que se levasse a sério a produção de alimentos. Era o óbvio depois de tudo o que vivemos no governo Bolsonaro, quando a fome foi às alturas e todos sofremos com a inflação. E era o óbvio diante de um governo que já havia feito tudo isso bastante bem no período 2003-14. Aquilo que deveria ser feito era conhecido, ainda que o passar dos anos tenha alterado alguns desafios. Mas os meses foram se encerrando, a gente aqui sem poder dar milho aos pombos, enquanto uma agenda sólida de políticas não se movia, ou se movia lenta e desconexamente. 

Os fiscais do Lula

A recente declaração de Lula sobre controle de preços é estarrecedora. É o famoso “qualquer nota”. E não é, meramente, uma infeliz declaração isolada: é a manifestação de um diagnóstico totalmente equivocado sobre o que está em curso no país. “Você tem às vezes um produto que a produção aumenta muito e o pessoal, em vez de baratear, aumenta o preço porque as pessoas estão comprando. Eu tenho dito sempre o seguinte nas reuniões que eu tenho feito: uma das coisas mais importantes para que a gente possa controlar o preço é o próprio povo. Você sabe disso. Se você vai no supermercado aí em Salvador e desconfia que tal produto está caro, você não compra. Se todo mundo tiver essa consciência e não comprar aquilo que ele acha que está caro, quem está vendendo vai ter que baixar para vender, porque senão vai estragar.”

São tantas camadas que é difícil saber por onde começar. Pode ser pelo mais fácil: esses produtos não estragam porque, em sua maioria, são processados e ultraprocessados, que podem passar meses ou anos numa prateleira. Segundo, e mais ofensivo, é que obviamente as pessoas não têm como esperar um produto abaixar de preço: é comida, uai. Terceiro, e mais tolo, é que essa crença no poder do boicote está totalmente equivocada. É acreditar que as pessoas juntarão as mãos na frente de um arco-íris, como se fosse o clipe final de um filme da Disney em que todos se voltam contra o vilão. 

Veja, Lula não falou desse boicote aos preços elevados como uma questão qualquer em meio a tantas outras. Ele apontou como a atitude central a ser tomada. É um lugar comum que não deveria sair da boca de um presidente – não desse presidente, líder de um partido nascido da luta dos trabalhadores justamente por mais direitos e num contexto inflacionário grave, no qual a sociedade se mobilizou para declarar que fome e alimentos são um problema do Estado, e não dos indivíduos. 

Para quem nasceu ou já era crescidinho nos anos 1980, o sabor amargo na boca é ainda mais profundo. A declaração de Lula estabelece uma conexão mental inevitável com os “fiscais do Sarney”, nome que se deu à tentativa do então presidente, José Sarney, de criar um movimento popular em torno do controle de preços. 

De tanto dar ouvidos aos sereios da Faria Lima, Lula e os ministros já não parecem escutar outras vozes. E esse é um ponto particularmente interessante: o governo desaprendeu, literalmente, o caminho da roça. Lá atrás, foi a sociedade brasileira que trouxe as soluções que levaram o país a deixar, em 2014, o Mapa da Fome das Nações Unidas, numa articulação que começou ainda durante a ditadura.

Por essa trajetória, era de se imaginar que novamente seria a sociedade que apresentaria as soluções após um novo, ainda que mais breve, período autoritário. E a sociedade apresentou, mas o governo não ouviu. Por exemplo, por meio do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, que coube a Lula a missão de reativar não apenas uma, mas duas vezes – após FHC e após Jair Bolsonaro. 

Era explícita a energia acumulada por movimentos e organizações sociais ao longo dos seis anos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. A formulação prática e teórica sobre agroecologia estava madura como paradigma para a superação do modelo em larga escala, repleto de fertilizantes químicos e agrotóxicos. Mas, de novo, essa esperança foi enxergada pelo governo como um microexemplo positivo, um item digno de apreço e curiosidade, mas incapaz de produzir alimentos em quantidade suficiente. 

Mesmo agendas mínimas do ponto de vista civilizatório, e razoáveis do ponto de vista orçamentário, estão penando. É o caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), absolutamente barato e voltado aos pequenos agricultores. E do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que acumula uma defasagem de 42% no poder de compra em 14 anos

Esse é o país que tem uma enorme sociobiodiversidade. Que tem povos tradicionais que transbordam conhecimentos capazes de oferecer respostas de fato. Respostas ao preço dos alimentos e contra o fim do mundo. É o país que tem um dos maiores movimentos sociais do planeta, o MST. É o país que reúne capacidade de pesquisa científica e de crítica social. Que se orgulha dos seus modos de vida e de sua cultura alimentar. 

Mais uma vez, e essa tem sido uma constante nesses vinte anos, o governo do PT se encontrou numa bifurcação: dobrar a aposta na mobilização social ou atender a todos os pedidos do mercado. Não me cabe dizer se o governo acertou ou errou – não sou eu quem lida com chantagens e ameaças. Mas é certo dizer que o governo frustrou. 

Mais lidas do mês

Não há comunicação que resolva

Se fizéssemos uma checklist de tudo o que um governo pode errar no diagnóstico de uma situação, o governo Lula teria marcado um X em todos os pontos.

culpar a comunicação, e não o problema em si

ignorar as causas estruturais

ignorar atitudes emergenciais

ignorar medidas inéditas e que possam estimular o imaginário

procurar pelas soluções nos lugares que não têm como entregar soluções porque são a raiz do problema 

Voltando alguns dias no tempo, encontra-se o DNA da declaração, e uma confirmação da informação de bastidores de que o ministro da Casa Civil, Rui Costa, é uma das pessoas com maior influência no Planalto. Também em entrevista, o ex-governador da Bahia declarou: “O preço internacional está tão caro como aqui. O que se pode fazer? Mudar a fruta que a gente vai consumir. Em vez da laranja, consumir outra fruta.” Uma declaração que faz Rui Costa vestir o manto da rainha que mandou dar brioches aos pobres. 

O conjunto de evidências das últimas semanas expõe a dificuldade do entorno de Lula em interpretar a realidade. Eles sabem que uma garrafa de azeite custa mais de R$ 40? Um tablete de manteiga, R$ 15? Um pacote de leite, R$ 6? Estou usando preços encontrados na cidade de São Paulo, então, se na sua região é diferente para melhor ou pior, tranquilo, é algo que acontece, mas que não muda em nada o rumo da discussão. Em resumo, a pessoa com mais tempo no mundo poderia rodar 40 supermercados num dia que não teria escapatória: gastaria o salário todo, e talvez entraria no vermelho, apenas para comprar alimentos. 

É importante lembrar que a entrevista dada por Lula a rádios da Bahia faz parte da tal “nova estratégia de comunicação”. A origem das mudanças na Secretaria de Comunicação é um velho item da agenda lulista: “nós estamos fazendo tudo certo, mas não estamos sabendo comunicar. As pessoas são muito ingratas”. Onde quer que se olhe, não, vocês não estão fazendo tudo certo. Há coisas positivas, há gente esforçada, mas os resultados gerais são frágeis. Muito abaixo do que foram os primeiros mandatos. 

Em termos de comunicação, Lula poderia ter dado a mais brilhante das entrevistas, mas essa declaração desastrosa teria colocado tudo a perder. Ele talvez não tenha obrigação, mas seus assessores deveriam saber que esse tipo de fala, hoje em dia, é recortado e distribuído por uma rede de comunicação de extrema-direita que causa um estrago assombroso. 

Uma das peças inaugurais da nova estratégia de comunicação foi um simpático vídeo de Lula na horta da Granja do Torto. De chapéu na cabeça, ele declarou estar preocupado com o preço dos alimentos e que conversaria com os supermercadistas e com o agro. Com o agro? Seria como conversar com o fogo para saber se ele está de acordo com apagar o incêndio. 

No fundo, o lulismo tanto nutriu o mito de que o agro alimenta o mundo que agora acaba enredado nessa miragem. É verdade que esse setor é chave para determinadas discussões, como a produção de carne, mas, no balanço geral, é sólido afirmar que o agro mais faz pela fome que pela comida – ao promover o avanço sobre áreas de agricultura camponesa, incentivar a produção de commodities e a exportação, e moldar as políticas públicas para que desfavoreçam o plantio e a distribuição de arroz, feijão e companhia. 

Números não contam tudo

A entrevista também transparece algo de que se podia desconfiar: o governo vinha olhando os dados principais da economia e, com base neles, não via razão para se preocupar. O PIB vem crescendo, o rendimento do trabalhador voltou a se expandir após um longo período de estagnação, o desemprego está baixo. Ou seja, da próxima vez, talvez valha, além das planilhas, dar uma olhadinha nas ruas, nos supermercados, nas feiras. 

O diagnóstico dado pelo presidente se baseia na crença de que a inflação está atrelada justamente a esse sucesso econômico. Seria a repetição do que se deu na virada de Lula para Dilma, em 2011, quando de fato houve um excesso de demanda. Tudo isso pode ter um papel, sem dúvida, mas não explica o todo. 

O problema do café não é de demanda. É de oferta, devido a uma quebra de safra e à exportação sem freios. Ah, tá, então vocês querem culpar o governo Lula pelos problemas climáticos? Qualquer governo que se preze precisa, no século 21, ter um plano para lidar com temperatura e chuva. Ou seja, precisa ter se planejado para gerar excedentes de um produto – estoques, que eram um problema evidente do governo Bolsonaro e que custam barato para restabelecer. Nós aqui do Joio, que não temos na mão a estrutura governamental, sabíamos o quanto o café vem sendo ameaçado pelo avanço da soja e do milho. Por quê? Porque perguntamos às pessoas que estão lá na ponta produzindo. 

Note-se que esse é o governo que lançou em outubro do ano passado um plano nacional de abastecimento repleto de medidas. Mas, para isso tudo, quase sempre a resposta é: “Não temos dinheiro.” A ênfase está sempre na agenda pautada por corporações, pelo mercado, pelo Centrão, pelos agentes que conseguem manter o governo sob diária chantagem. 

O problema da carne não é apenas de demanda. É de exportação sem freios. A falta de imaginário político do governo é tamanha que não se cogita mexer nisso. Diante de qualquer murmúrio sobre essa possibilidade, vem à frente os ministros dizer que não se adotará qualquer medida “heterodoxa”. Heterodoxa para quem? É pecado falar em alimentar a população? 

A ênfase no varejo também reforça algo que vinha causando crescente espanto entre quem discute a sério o problema. De novo, é um diálogo com os piores diagnósticos sobre inflação – inclusive, com Jair Bolsonaro, que chegou a culpar os supermercados quando do problema ocorrido em 2020. 

Esse setor tem, de fato, um papel estrutural na questão dos preços. Por exemplo, quando exclui de sua base de fornecedores os pequenos agricultores, ou quando privilegia determinadas corporações, ou quando promove uma concorrência desleal com pequenos estabelecimentos – tratamos de tudo isso em nosso livro Donos do mercado. Mas, nessa conjuntura, há muito pouco que se possa fazer quanto às grandes redes. O problema está em outros lugares. 

Sem diagnóstico fica difícil

O ponto mais preocupante de tudo isso é aquilo que significa em termos de futuro político e alimentar. Se o diagnóstico está errado, não tem como haver solução. O governo corre o risco de realmente repetir Sarney, de crise em crise, sempre empurrando o problema adiante. 

O que Lula e seus ministros estão dizendo em termos alimentares seria equivalente a afirmar que ivermectina previne Covid e que as vacinas nos transformarão em jacarés. Pode-se dizer que entre uma coisa e outra há uma diferença fundamental, que é a má-fé, mas o que quero enfatizar são os termos concretos: sem admitir que o problema tem raízes, ele seguirá crescendo, e tendo efeitos dramáticos. 

Refletindo de novo sobre aquele amargor dominante na boca, finalmente entendo que a angústia em relação ao futuro é o que domina. Sabíamos que o governo Lula era o teto daquilo que o sistema político é capaz de oferecer nesse momento. Mas, passados dois anos e dois meses, vemos que esse teto é tão baixo que já não cabemos de pé. 

Não há nada no horizonte que dê esperança em relação à esquerda institucional. O melhor cenário é ruim: um governo Lula 4, com um presidente incapaz de ler a realidade, ministros fracos, a direita dando as cartas. Para além de um mandato presidencial, a crise dos preços ilumina o fim de um ciclo lulista que insiste em nunca terminar. 

Artigod Lula, os fiscais do Sarney e um fim de ciclo que nunca termina publicado em O Joio e O Trigo.

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