Não é só o hábito de vapear que custa a desaparecer. O design complexo dos dispositivos torna a reciclagem um desafio, deixando para trás um rastro que transforma paisagens em cemitérios de plástico e metais pesados
Nesta reportagem, o Joio utiliza nomes fictícios* para preservar a identidade das fontes que solicitaram anonimato.
Ana Cristina, de 56 anos, perdeu as contas de quantas vezes revirou o quarto do filho em busca dos pequenos dispositivos coloridos que ele escondia. À primeira vista, pareciam marca-textos ou pen drives. Por via das dúvidas, recolhia todos que encontrava e os guardava em uma caixa. Mas, em poucos dias, outro surgia para ocupar o lugar.
Como a mãe não sabia do que se tratava, coube a Lucas, então com 12 anos, fornecer uma resposta. Segundo o menino, era só uma engenhoca da moda, usada para puxar um vaporzinho com gosto de bala. Ana Cristina tentou acreditar. Mas não demorou muito para os riscos associados ao produto tomarem as manchetes.
Foram semanas de broncas e pendengas desde aquele início de novembro de 2021, quando a analista de sistemas aposentada descobriu que o filho, hoje com 15 anos, estava usando pods – um tipo de dispositivo eletrônico para fumar (DEFs).
Diferente dos cigarros tradicionais, os DEFs não queimam tabaco. Em vez disso, aquecem um líquido formado por substâncias como propilenoglicol (PG), glicerina vegetal (VG), nicotina (muitas vezes presente mesmo quando o rótulo indica o contrário), acetato de vitamina E e outros aditivos, muitos deles com efeitos desconhecidos na saúde.
Com o tempo, a coleção de Lucas encolheu. Mas o alívio da mãe durou pouco. No lugar dos dispositivos, vieram os cigarros convencionais, sinal de que o problema apenas havia mudado de forma. E quanto aos dispositivos antigos? “No desespero, jogava tudo no lixo. Confesso que não pensei muito sobre isso. Só queria me livrar deles”, desabafou Ana Cristina.
Só que o vape é um produto controverso. Não apenas pela falta de consenso científico sobre os impactos de seu uso, mas por concentrar três tipos diferentes de resíduos em um único dispositivo.
Primeiro, existem os plásticos que formam o corpo do aparelho. No mundo todo, mais de 430 milhões de toneladas de plástico são produzidas anualmente. Esses materiais levam séculos para se decompor. Aos poucos, fragmentam-se em pedaços de até cinco milímetros, chamados microplásticos. Insolúveis, essas partículas contaminam a vida marinha. Também afetam as pessoas, podendo ser inaladas, ingeridas ou absorvidas pela pele.
No Brasil, enquanto as recicladoras de plásticos enfrentam cenários de ociosidade de até 40% de sua capacidade instalada, grande quantidade de embalagens e produtos fabricados a partir desses materiais tem como destino aterros sanitários, lixões a céu aberto ou é lançada em corpos d’água.
Depois, vem o lixo eletrônico. As baterias de íon-lítio e os circuitos, em contato com outras substâncias, são difíceis de reciclar. Quando descartados sem os devidos cuidados, contaminam o solo e aumentam os riscos de incêndios, especialmente em aterros sanitários, mas também em lugares aleatórios, como já aconteceu durante um voo entre Genebra, na Suíça, e Amsterdã, na Holanda.
Por fim, há os resíduos perigosos. Metais pesados como níquel e chumbo, além da nicotina líquida presente nos e-juices (líquidos que servem de essência para o cigarro eletrônico), são altamente tóxicos. Se chegam a rios ou lençóis freáticos, os danos ambientais podem ser devastadores – e, em muitos casos, irreversíveis.
Devido a sua construção complexa, somada à falta de conscientização ou opções acessíveis para o descarte seguro, os vapes, do inglês vapor, têm se tornado uma preocupação crescente. Eles aparecem tanto como resíduos descartados em ambientes públicos quanto como parte significativa do volume de lixo urbano.
Mesmo com consumidores conscientes desse passivo ambiental, as estruturas vigentes não permitem escolhas sustentáveis. Inclusive em nações onde o comércio e o consumo desses dispositivos é permitido – o que não é o caso do Brasil. Por aqui, a produção, importação, venda e propaganda são proibidas (embora muita gente não saiba).
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Burocracia atrapalha descarte correto
No Reino Unido, 13 cigarros eletrônicos são jogados fora a cada segundo, de acordo com a ONG Material Focus. Por semana, são 8,2 milhões de vapes que vão parar no lixo ou são reciclados de forma inadequada.
O lítio desperdiçado apenas com as baterias seria suficiente para abastecer 10.127 carros elétricos por ano. Mas em outubro do ano passado, mais de 90% dos produtores de vapes e 90% dos varejistas não estavam cumprindo suas obrigações legais de fornecer e pagar pela coleta e reciclagem de vapes.
Os produtos descartáveis caracterizam o ponto mais alto da cultura do desperdício. E os fabricantes adoram: são produtos que viciam, exigem reposição constante e, muitas vezes, custam mais caro que o cigarro convencional. É o modelo de negócios perfeito – para eles, é claro.
Para o planeta, é um pouco menos bonito: um estudo do Instituto das Nações Unidas para Treinamento e Pesquisa descobriu que cerca de 844 milhões de vapes são jogados fora a cada ano no mundo todo. O peso combinado é equivalente a seis Torres Eiffel.
Mesmo quando existem opções de coleta e destinação, a maior parte dos usuários nem sequer tenta: estudos de garbologia mostram que os dispositivos usados acabam quase sempre no lixo comum. Uma pesquisa de 2022 revelou que apenas 8% dos vapers adolescentes e jovens nos Estados Unidos — país onde o mercado é legalizado – descartam seus dispositivos no âmbito de programas de reciclagem.
A sanitarista Stella Bialous, brasileira radicada nos EUA, defende que a responsabilidade pela coleta e destinação dos dispositivos seja dos fabricantes. Pesquisadora do Center for Tobacco Control Research and Education da Universidade da Califórnia, em São Francisco, ela destaca as barreiras enfrentadas pelos consumidores. “É preciso entrar em contato com o fabricante, esperar o envio de um invólucro, embalar o dispositivo e levá-lo a uma agência de correio. Trata-se de um processo cheio de etapas e burocracia.”
Não é diferente no Reino Unido. “Muitas vezes, o consumidor precisa desmontar o dispositivo ou enviá-lo de volta ao fabricante, sendo ele quem arca com os custos”, explica Sophie Braznell, coordenadora de pesquisa do Tobacco Control Research Group da Universidade de Bath. Não surpreende que a maioria das pessoas simplesmente desista
A ministra para a economia circular Mary Creagh afirmou: “Equipamentos eletrônicos como os vapes estão sendo vendidos no Reino Unido por produtores que não estão arcando com sua fair share nos custos de reciclagem, reutilização ou descarte de itens antigos ou quebrados.”
Se existe um objeto que encapsula as contradições do nosso tempo, esse objeto é o vape descartável. Ele concentra em si o apelo da tecnologia, o marketing que projeta um certo ar cool sobre quem usa e o desperdício. O que sobra é um produto que agrava a crise ambiental e vicia consumidores.
Segundo Nações Unidas, cerca de 844 milhões de vapes são jogados fora a cada ano no mundo todo. Foto: iStock
E no Brasil?
Desse mal o Brasil não padece. Em 19 de abril de 2024, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu, de forma unânime, manter proibida a comercialização, fabricação e importação, transporte, armazenamento e propaganda de cigarros eletrônicos no país, algo que já vigorava desde 2009. A decisão levou em conta o cenário internacional de regulamentação, as manifestações da comunidade científica e o resultado da consulta pública conduzida pela agência.
Do ponto de vista ambiental, a medida segue o princípio da precaução: é melhor prevenir o estrago do que lidar com as consequências depois. Ainda assim, a proibição, como está hoje, não tem conseguido conter por completo a entrada de dispositivos ilegais.
Dados das últimas operações realizadas pela Receita Federal e pela Polícia Rodoviária Federal sugerem o crescimento desse mercado ilegal, apesas das proibições e ações de fiscalização. O volume apreendido mais que dobrou de 2021 para 2022 e continuou aumentando de forma expressiva até 2024, quando ultrapassou a marca de 2 milhões de unidades.
Apesar de intensificar a fiscalização e suspender CNPJs de lojas que vendem cigarro eletrônico, ainda é fácil, principalmente nas capitais brasileiras, encontrar o dispositivo em tabacarias e bancas de jornais. Além, é claro, da internet.
A desinformação e a baixa percepção de risco sobre os vapes têm aumentado sua aceitação em espaços públicos. Essa conclusão aparece em um relatório encomendado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), elaborado para a Anvisa durante a revisão da regulação dos dispositivos, em 2022.
Enquanto o levantamento do Ministério da Saúde Vigitel aponta que o uso de vapes entre adultos se manteve relativamente estável entre 2019 e 2023, a história é diferente para as gerações mais jovens. Um inquérito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), conduzido com 10 mil brasileiros, revelou que quase 20% dos jovens entre 18 e 24 anos já vapearam. Entre adolescentes de 13 a 17 anos, os dados da Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (PeNSE 2019) estimam que quase 17% já deram suas primeiras tragadas.
De vez em quando, porém, até os mais velhos caem nas graças dos DEFs. Wagner Eduardo Polonio, 33, técnico de manutenção de caixas eletrônicos em agências bancárias, acredita ter superado o tabagismo graças à tecnologia. “Depois de três meses com o vape, nunca mais voltei para o cigarro”, conta.
Mas tem um detalhe: o “suco eletrônico” que Polonio utiliza há cinco anos tem uma composição com 35 miligramas de sais de nicotina – uma forma química obtida pela combinação do alcaloide com ácidos orgânicos – por cada mililitro de líquido. Essa variação é mais estável e menos agressiva para a garganta, o que permite – e incentiva – o consumo em maiores concentrações.
Polonio faz uso de um frasco de 30 ml de essência a cada 15 dias, acumulando no organismo a mesma quantidade de nicotina de 1.050 cigarros. Mesmo que escolhesse uma versão com 20 mg/ml – o máximo permitido em países como o Canadá – ainda estaria ingerindo o equivalente a dois maços diários.
De fato, um estudo inédito do Instituto do Coração (InCor) revelou que a nicotina presente em usuários exclusivos de vapes pode ser seis vezes maior do que em quem consome 20 cigarros por dia. Enquanto fumantes tradicionais dão cerca de 200 tragadas diárias, os usuários de DEFs podem ultrapassar 1,5 mil.
Apesar dos riscos, muitos trocam um veneno por outro. Aos 26 anos, a estudante de psicologia Paula* viu no aparelho uma saída para lidar com o estresse enquanto se preparava para congelar óvulos. Fumante de cigarros tradicionais, acreditou que o vaporizador seria uma escolha menos nociva. “Há vários preparativos para o procedimento. Não se pode fazer um monte de coisa. Imaginei que o vape seria ‘menos pior’”, relata.
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A decisão veio com um empurrão inusitado. “Minha mãe estava conversando com o namorado de uma amiga quando ele comentou que o vape fazia menos mal. Ela achou a ideia interessante e me encorajou: ‘Filha, por que você não tenta?’. Foi assim que comecei.”
Em maio de 2022, Paula encomendou seu primeiro dispositivo recarregável por R$ 200, mais R$ 95 de essência e R$ 15 de frete. A estratégia acabou resultando em um hábito combinado, também conhecido como uso dual.
Hoje, a estudante alterna entre os dois produtos: em casa, usa o vape; na rua, recorre ao cigarro. Recentemente, adquiriu um segundo aparelho, ainda mais sofisticado, com visor e capacidade para 23 mil puffs (unidade que mede a vida útil do aparelho). “Eu acho eles tão bonitinhos”, admite.
Enquanto muitos consumidores se contentam com um ou dois modelos, outros fazem do vape quase uma religião. O advogado Christian*, 26 anos, por exemplo, acumulou mais de 200 dispositivos descartáveis ao longo dos anos, comprando lotes inteiros pela internet.
Chegou a criar um canal no YouTube, desativado por infringir as diretrizes da comunidade, onde compartilhava dicas e experimentos. Para ele, o cigarro eletrônico era parte de um estilo de vida. “Já fiz de tudo: comprei as peças separadas, as nicotinas, misturei tudo, criei minhas próprias essências”, conta.
Foram meses flertando com o risco: exposição a substâncias tóxicas, manipulação de ingredientes de procedência duvidosa e o cenário nada ideal de transformar sua casa em um laboratório de experimentos improvisados. Ainda assim, tudo parecia sob controle. Até que a lua de mel chegou ao fim.
Christian começou a sentir os efeitos do hábito que manteve por cinco anos. O ressecamento das vias aéreas – um dos sinais da Evali (Doença Pulmonar Associada aos Produtos de Cigarro Eletrônico ou Vaping) – foi o alerta que precisava para interromper o uso. Não foi fácil. “Largar o vape é muito mais difícil do que largar o cigarro”, relatou. “O cigarro, em algum momento, te faz parar. É uma experiência desagradável. Tem o cheiro, pega na garganta. O vape, por outro lado, te faz continuar.”
A decisão, porém, não abalou sua confiança no produto. “O problema não é o vape em si, mas o jeito como algumas pessoas usam, sem fazer manutenção, ou os líquidos que escolhem”, defende. Os dispositivos de Christian ainda ocupam um espaço na gaveta, arranjados como troféus de um mercado que, oficialmente, nem deveria existir.
Reino Unido proibiu vapes descartáveis
Mas a culpa é mesmo do consumidor? Onde, afinal, se descarta um cigarro eletrônico? Em Americana, interior de São Paulo, uma tabacaria chamada Empório HK parecia ter uma resposta. Em meados de 2022, a loja começou a promover o chamado “descarte ecológico” em suas redes sociais. “Traga seu pod descartável e ganhe 10% OFF no próximo”, anunciava uma postagem.
A oferta chama atenção, sobretudo em um país onde a destinação de produtos de nicotina sem fumaça é inviável por falta de infraestrutura (e ilegal por definição). O Joio tentou contato com o estabelecimento por WhatsApp, em 21 de novembro de 2024, para entender os bastidores da ação de marketing.
O proprietário Gustavo Henrique Pereira evitou entrar em detalhes. Disse que tanto a campanha quanto a comercialização de DEFs haviam sido encerradas entre julho e agosto daquele ano – meses após a nova decisão da Anvisa de manter os dispositivos proibidos. “Honestamente, hoje, com as questões que isso envolve, a gente quer mais é distância. A gente não trabalha mais. Mesmo, graças a Deus”, afirmou em áudio.
A Material Focus calcula que 80% dos materiais associados aos vapes, como alumínio, aço e cobre, poderiam ser reciclados. Liberar o mercado e criar regras de descarte, portanto, parece a solução mais óbvia. Mas a experiência de outros países denuncia uma realidade mais complexa.
No Reino Unido, onde os vapes descartáveis estão com os dias contados, mais de 250 milhões de dispositivos podem ser jogados fora antes da proibição, prevista para junho de 2025. O motivo? A maioria dos varejistas não está cumprindo seu dever legal de ajudar os consumidor a reciclá-los.
Em janeiro de 2023, a influenciadora escocesa Laura Young decidiu sair em uma caminhada com seu cachorro nos arredores de Dundee para descobrir quantos vaporizadores encontraria pelo caminho. Após percorrer cerca de seis quilômetros em pouco mais de uma hora, ela recolheu 55 dispositivos no chão. “Alguns faziam barulhos assustadores e soltavam fumaça”, escreveu em sua conta no X (antigo Twitter). “Muitos estavam molhados e danificados por ficarem expostos ao ar livre”, prosseguiu.
Num estudo realizado pela Truth Initiative em 2019, quase metade (46,9%) dos proprietários de DEFs afirmou que o aparelho que utilizavam não fornecia qualquer informação sobre descarte, como onde enviar baterias usadas ou pods vazios. Além disso, a maioria (73,7%) dos entrevistados considerou difícil encontrar locais de coleta para cigarros eletrônicos.
A psicóloga sanitarista Milena Carvalho, pesquisadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde (Cetab) da Fiocruz, argumenta que dispositivos como os cigarros eletrônicos refletem um problema mais estrutural: a criação de produtos que não atendem a necessidades reais da sociedade: “Estamos falando de itens que, a rigor, não precisariam existir.”
Segundo Carvalho, além de acumularem resíduos tóxicos, plásticos e baterias, esses eletroeletrônicos criam uma cadeia de impactos ambientais desnecessários. “Se não forem produzidos nem consumidos, não será necessário discutir a destinação”, conclui.
Embora reconheça a importância da economia circular – reutilizar e reciclar –, Carvalho acha que isso não funciona no caso dos DEFs. O problema está nos resíduos tóxicos que se acumulam em tanques, cápsulas, plásticos e demais componentes desses dispositivos. “Pense na quantidade de água e energia que seria necessária para limpar e descontaminar cada peça. É um processo que, ambientalmente, não faz sentido”, observa.
O último suspiro
Entre 1990 e 2019, as taxas globais de tabagismo caíram oito pontos percentuais, segundo estimativas de 2021 do Global Burden of Disease, um estudo internacional que avalia o impacto de diversas doenças e fatores de risco na saúde pública. Ironicamente, é sob o pretexto de ajudar fumantes a abandonar os cigarros que a Big Tobacco promove seus produtos sem fumaça – que, apesar do marketing, ainda carregam nicotina e carcinógenos.
Desde 2008, a Philip Morris International (PMI) tem apostado em “produtos de nova geração” – dispositivos de tabaco aquecido, vaporizadores e bolsas de nicotina. O investimento não foi modesto: mais de 12,5 bilhões de dólares já foram despejados nesse segmento, que até o terceiro trimestre de 2024 representava 38% da receita líquida da empresa, segundo seus próprios registros. E a jogada parece ter dado certo.
O IQOS, dispositivo de tabaco aquecido da PMI, roubou o trono do Marlboro como marca líder da companhia, simbolizando uma nova era onde o futuro do vício também é tecnológico.
“Fatos alternativos” têm sido usados para impulsionar vendas em plataformas de comércio eletrônico. No site da Elfbar Brasil, o pod descartável é vendido como uma solução prática e conveniente. “Eles já vêm preenchidos com a quantidade certa de líquido para os puffs escolhidos, simplificando o uso e evitando bagunças na recarga”, anuncia a marca.
Defensores argumentam que dispositivos mais complexos e reutilizáveis já seriam suficientes para aliviar o impacto ambiental. Mas o próprio site da marca entrega o jogo: “Dispositivos complexos estão perdendo popularidade devido à facilidade e conveniência dos descartáveis.” A praticidade, para a empresa, continua sendo o principal atrativo, ainda que seja a natureza a arcar com o ônus.
A estratégia é lançar produtos com mil cores e sabores para empurrar doses cada vez maiores de nicotina aos usuários. Um artigo publicado em 29 de janeiro de 2024 no blog da Cia do Vapor, que se apresenta como a maior loja de vapes do Brasil, destacou as tendências de design dos DEFs para o ano.
O texto disserta sobre algo que eles chamaram de minimalismo futurista: “Os vapes deste estilo terão linhas suaves, acabamento em metal escovado e cores sóbrias, que combinam elegância com uma estética futurista.” Não é exatamente uma novidade.
“Se você pensar em um iPhone ou em outros produtos da Apple, percebe que eles estão sempre evoluindo. A marca lança novos modelos para conquistar um público diferente ou reforçar a ideia de que você precisa da versão mais recente”, diz Stella Bialous, da Universidade da Califórnia. É uma estratégia padrão: criar a percepção de obsolescência para manter o consumo constante.
Produtos elegantes e inovadores; designs compactos e ergonômicos; vaporização suave e satisfatória. Esses são alguns dos adjetivos que a Elfbar Brasil utiliza para promover seus pods. A lógica é malandra. Se é uma nova forma de fumar, deve ser melhor que a antiga, certo? Errado.
Embora os efeitos do uso prolongado do vape não sejam totalmente conhecidos, já se comprovou que os dispositivos – formalmente chamados de “sistemas eletrônicos de administração de nicotina” (SEANs) – liberam substâncias cancerígenas. Além disso, a OMS alerta que os componentes presentes em muitas essências podem comprometer o desenvolvimento cerebral e provocar transtornos de aprendizagem em jovens.
Essas evidências científicas desmontam a imagem do vape como uma solução segura para o consumo de nicotina. Mas o esforço da indústria para convencer o contrário tem surtido efeito. De acordo com a OMS, as empresas visam ativamente as novas gerações por meio das redes sociais, festivais de música e esportes, além de novos produtos com sabor.
Os “produtos de nova geração” têm sido promovidos como uma experiência mais agradável que o cigarro tradicional. No site da Philip Morris, o IQOS é descrito como uma alternativa superior — sem fumaça, cinzas ou odor de cigarro, causando menos incômodo para quem está por perto. A empresa também afirma que o produto é mais ecológico.
Reprodução: Philip Morris
De fato, o lixo do tabaco figura entre as maiores fontes de poluição plástica do planeta. Estima-se que cerca de 4,5 trilhões de bitucas sejam descartadas no meio ambiente todos os anos. No Brasil, elas representam de 30 a 40% do lixo coletado em áreas urbanas e costeiras. Mesmo em condições ideais, cada cigarro pode levar pelo menos nove meses para se decompor.
Por outro lado, os DEFs podem ser uma ameaça ambiental ainda maior. Segundo a psicóloga sanitarista Milena Carvalho, pesquisadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Fiocruz, esses dispositivos liberam plástico, sais de nicotina, metais pesados, além de baterias de íon-lítio inflamáveis, contaminando cursos d’água, o solo e a vida selvagem.
Em novembro de 2024, o Joio ofereceu às empresas Juul, Ignite, Nikbar e Elfbar a oportunidade de apresentar, de forma concreta, as medidas de sustentabilidade associadas aos seus produtos. Apesar das tentativas de diálogo, nenhuma das fabricantes se manifestou.
Rastro de destruição
Assim como o irmão mais velho, o cigarro eletrônico chegou ao mundo chutando a porta. Sua trajetória começa com a devastação de habitats para a extração dos materiais que o compõem.
Um relatório da OMS divulgado em 2022, intitulado Tobacco: poisoning our planet? (“Tabaco: envenenando nosso planeta?”, em tradução livre), aponta essa produção como uma das principais causas de desmatamento, uso excessivo de água e poluição do ar e do solo.
O falso progresso que polui do início ao fim
Da mineração predatória ao lixo eterno, os vapes são um legado tóxico disfarçado de inovação
1. Extração de recursos
A produção de vapes começa com a retirada de matérias-primas como plástico, lítio e metais pesados. Esses processos consomem grandes quantidades de água e energia, além de liberar toneladas de CO₂ e gerar resíduos tóxicos.
2. Produção
Os componentes extraídos são transformados em dispositivos nas indústrias. A fabricação utiliza químicos nocivos, contribui para a poluição do ar e depende de energia intensiva.
3. Transporte global
Os vapes percorrem longas distâncias até os mercados consumidores. O transporte em navios e aviões aumenta as emissões de carbono e a pegada ambiental do produto.
4. Consumo
Projetados para curto uso, os vapes descartáveis dominam o mercado. Mesmo os recarregáveis têm vida útil limitada, resultando em um modelo de consumo que gera resíduos contínuos.
5. Descarte inadequado
Sem sistemas eficientes de reciclagem, os vapes acabam em aterros ou jogados em ambientes naturais. Eles liberam microplásticos, nicotina e metais tóxicos que contaminam o solo, a água e a fauna.
6. Impacto de longo prazo
Os resíduos de vapes não se degradam facilmente. Microplásticos e substâncias tóxicas persistem no meio ambiente, afetando ecossistemas e até mesmo a saúde humana.
Já uma nova investigação publicada pela ONG mexicana PODER analisou a cadeia de suprimentos por trás do principal produto de tabaco aquecido da PMI, o IQOS. O relatório El negocio de la adicción (“O negócio do vício”, em tradução livre) destaca como o IQOS e outros novos produtos de nicotina dependem da extração de metais e minerais associados a uma ampla gama de problemas sociais e ambientais, incluindo poluição, escassez de água e violações de direitos humanos.
De acordo com o relatório, os impactos afetam mais intensamente grupos historicamente marginalizados, como povos indígenas, mulheres, meninas, pessoas em situação de pobreza e migrantes que vivem em países de renda baixa e média.
Habitantes do triângulo do lítio – região das salinas de Argentina, Bolívia e Chile, que abriga mais de 60% das reservas globais do precioso metal alcalino – têm denunciado perda de biodiversidade, redução da disponibilidade de água potável e deslocamento forçado.
A corrida por um transporte mais ecológico aumentou a demanda pelo ‘ouro branco’ que compõe as baterias. Além de manter o paradigma do transporte individual, suas diversas formas de extração estão longe de ser sustentáveis.
A extração de fontes minerais consome muita energia e libera grandes quantidades de gases de efeito estufa. Enquanto são necessários de 2 a 3 gramas de lítio para produzir a bateria de um iPhone 11, o módulo de energia de um Tesla Model S precisa de 12 quilos do metal, mas dependendo do veículo essa quantidade pode chegar a 30 quilos. Para cada tonelada de lítio refinado, são emitidas 15 toneladas de CO2 e consumidos cerca de dois milhões de litros de água.
Cada vape contém apenas 0,15 gramas de lítio – bem menos que um iPhone. Mas o celular da maçã pelo menos conta com uma vida útil maior. Mesmo os DEFs com um número maior de puffs, projetados para driblar o banimento de vapes de uso único, tendem a ser abandonados depois de um tempo.
Mas não é só isso: um artigo da revista Tobacco Induced Diseases mostrou que usuários de aparelhos de terceira geração dão mais puffs por dia, aumentando o consumo de e-liquid e, por extensão, a geração de lixo perigoso.
Embora versões sintéticas estejam começando a pipocar, a nicotina presente nesses produtos costuma ser extraída de plantas de tabaco. Esse processo consome uma enorme quantidade de água, além de produzir resíduos não recicláveis e poluentes.
As emissões de carbono provenientes da fabricação e do transporte também entram na equação. Um estudo conduzido pela Zero Waste Scotland, publicado em junho de 2023, avaliou o impacto ambiental dos cigarros eletrônicos descartáveis na Escócia. Os resultados indicaram que, em 2022, as emissões totais associadas a esses dispositivos foram estimadas em até 4.292 toneladas de CO2, o que corresponde às emissões de aproximadamente 2,1 mil automóveis nas estradas escocesas.
Além disso, a fabricação de cigarros eletrônicos, concentrada em países como a China, implica em uma cadeia de distribuição global que utiliza navios e aviões, aumentando ainda mais as emissões associadas ao transporte internacional.
Por que as emissões do vaping contribuem tanto para a poluição do ar quanto para as mudanças climáticas? Além de conter partículas ultrafinas que podem penetrar nos pulmões e na corrente sanguínea, os solventes do aerossol emitidos pelos dispositivos liberam compostos orgânicos voláteis que geram ozônio.
Análises químicas de cigarros eletrônicos já revelaram produtos de degradação como formaldeído (usado para embalsamar cadáveres), acetaldeído (relacionado à ressaca alcoólica) e acroleína (ainga arma química da Primeira Guerra Mundial, hoje empregada como herbicida).
O modelo de vendas perpetuado pela indústria não ajuda. Nada que usamos por um ou dois dias deveria poluir o planeta para sempre. Mas é exatamente o que acontece. Ao contrário de cascas de banana ou ovos, os microplásticos liberados pelos vapes não são biodegradáveis nem inofensivos. Eles têm sido associados a problemas de fertilidade, danos intestinais e até mesmo mutações no DNA. A composição dos cigarros eletrônicos varia de acordo com o modelo e o fabricante, mas boa parte de sua estrutura é feita de plástico.
Em 2023, o mercado global de cigarros eletrônicos e vapes foi avaliado em aproximadamente 28,17 bilhões de dólares, com uma taxa de crescimento anual projetada de 30,6% até 2030. Estima-se que os dispositivos descartáveis representem cerca de 20% desse mercado, o que equivale a aproximadamente 5,63 bilhões de dólares em vendas. Como cada unidade descartável contém, em média, 0,15 gramas de lítio em sua bateria, só em 2023, a produção desses aparelhos utilizou cerca de 84,5 toneladas de lítio.
Essa quantidade é suficiente para produzir 14 mil baterias de carros elétricos padrão, como as utilizadas em veículos Tesla Model 3. Em outra comparação, poderia alimentar aproximadamente quatro milhões de smartphones. Usar esse material em dispositivos de uso único é um enorme desperdício de recursos.
O processo de reciclagem seria suficiente para resolver o problema? Não é bem assim. Devido ao tamanho dos componentes, é difícil recuperá-los por meio da separação mecânica – técnica típica usada para reciclar materiais de resíduos eletrônicos.
A extração de pequenas quantidades de cobre, por exemplo, é tão pouco rentável que não compensa o esforço. Além disso, a presença de ferro pode contaminar o mineral, conhecido por sua boa condutividade elétrica e térmica, reduzindo ainda mais seu valor de mercado.
A coisa piora por conta dos restos de líquidos de vaporização e dos plastificantes retardantes de chama, que soltam substâncias tóxicas no meio ambiente. Muitos desses compostos são poluentes orgânicos persistentes, com alta resistência à degradação.
No Brasil, a gestão de resíduos perigosos, incluindo produtos contendo nicotina, segue regulamentações específicas estabelecidas pela Política Nacional de Resíduos Sólidos e por normas do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), como a resolução nº 313/2002, que define a caracterização de resíduos industriais.
Embora a nicotina não seja explicitamente listada como um resíduo perigoso em legislações brasileiras, sua classificação pode ser feita com base em características químicas. De acordo com a Norma ABNT NBR 10.004, resíduos contendo substâncias tóxicas, corrosivas ou inflamáveis, como a nicotina, são classificados como perigosos. Essa classificação exige um manejo e descarte adequado, conforme regulamentações estaduais e federais.
Ainda que os dispositivos em si estejam proibidos pela Anvisa, o gerenciamento de resíduos desses produtos apreendidos ou descartados permanece sem regulação. Moral da história: no Brasil, a nicotina seria tratada como um resíduo perigoso por suas propriedades tóxicas, mas a ausência de protocolo para o descarte de DEFs e líquidos contendo nicotina inviabiliza o manejo adequado.
De acordo com Vera Luiza da Costa e Silva, atual secretária-executiva da Comissão Nacional para Implementação da Convenção Quadro do Tabaco (Conicq), o interesse da indústria do tabaco no mercado legal se resume a um único objetivo: normalizar o consumo. “A liberação é uma maneira de permitir o marketing. E o marketing envolve políticas de preço, publicidade, promoção, patrocínio. Enfim, uma série de benesses para o produto.” Mais uma razão para crer que o reforço na proibição dos cigarros eletrônicos se trata de um acerto.
Caso contrário, o que sobra no fim da linha? Plástico indesejado, resíduos de e-líquido, substâncias químicas tóxicas, baterias mortas. Cada componente deveria ter um destino específico. Mas o desenho de produto desses aparelhos torna a separação quase impossível. Na prática, boa parte vai parar na lata de lixo. Ou pior: direto no chão. O restante fica esquecido em uma gaveta – o que, por si só, já é um problema. Afinal, nem mesmo as gavetas duram para sempre.
Artigod Quase ninguém sabe como descartar um cigarro eletrônico. Então, onde eles vão parar? publicado em O Joio e O Trigo.
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