“É um regime de trabalho surreal”

Image

Não é todo dia que um escritor resolve retratar a dura rotina de quem planta tabaco. Mas Mariana Salomão Carrara encarou o desafio. Depois do celebrado Não fossem as sílabas do sábado (Todavia, 2022), que arrematou o Prêmio São Paulo de Literatura em 2023, a escritora paulistana apresenta um romance muito diferente de tudo o que já fez. O assunto chegou na sua vida por acaso, mas pra ficar. “Foi uma matéria que falava que havia uma epidemia de suicídios no Rio Grande do Sul. Eles apuraram que a média é muito acima da nacional. E, como a plantação de tabaco se concentra no Sul do Brasil, foram percebendo que os suicídios estavam ligados à produção de fumo”, me contou numa manhã de meados de dezembro.

A árvore mais sozinha do mundo (Todavia, 2024) é o resultado do novo mergulho de uma escritora que chegou há pouco tempo na cena literária, mas já construiu uma reputação de respeito. Mariana publica praticamente um romance por ano desde a sua estreia com Se deus me chamar não vou (Nós, 2019). E cada livro tem tido reconhecimento da crítica – ela já foi indicada ao Jabuti duas vezes, por exemplo – e do público. Quer puxar assunto sobre ficção numa rodinha de mulheres em São Paulo? Basta citar os livros de Mariana Salomão Carrara. 

É claro que o universo de leitores no Brasil é bastante restrito – de ficção mais ainda. Por isso que a escolha por retratar uma família de fumicultores surpreende. E Mariana sabe que propôs um exercício fora do comum para o seu público.  “É bem diferente. Não só a própria ambientação, mas até a velocidade do livro. É muito mais lento. Os meus outros livros têm aquela coisa de entrar dentro do pensamento da narradora, que é veloz, e devorar. Esse já é pra você entrar ali na viagem dos narradores, que não são humanos, e sentir um outro ritmo.”

Ah, sim. O livro é narrado por objetos. Uma árvore – a do título –, um espelho, uma caminhonete e, acredite se quiser, um equipamento de proteção individual contra agrotóxicos. Tanta novidade não espantou os leitores. Pelo contrário, parece ter ampliado o alcance da obra. “Tenho recebido mensagens e vídeos do Brasil todo, com pessoas muito comovidas com uma história que elas não conheciam”, me conta num café perto da minha casa e da dela (na troca de mensagens para marcar essa entrevista, descobrimos que somos vizinhas). 

Era meu último dia de trabalho antes das férias. Ela também estava prestes a tirar férias da Defensoria Pública, onde trabalha há 13 anos. Mas tinha uma agenda intensa pela frente. Dali alguns dias, Mariana embarcaria para o México como convidada da Feira Internacional do Livro de Guadalajara. Na volta, planejava se dedicar à escrita de outro romance. De modo tolo, protestei: ‘Ah, não! Vai pra praia!’. Muito educada, ela respondeu: ‘É assim que me divirto’. Sorte nossa. 

Leia os melhores trechos da conversa. 

O Brasil é o terceiro maior produtor de tabaco do mundo e o maior país exportador. Em torno de 140 mil famílias plantam fumo, principalmente no Sul do país. Mas tudo isso é pouco conhecido das pessoas… Como começou seu interesse pelo universo do fumo?

Foi uma matéria da Paula Sperb, publicada em 2019 na BBC Brasil, que falava que havia uma epidemia de suicídios no Rio Grande do Sul. Eles apuraram que a média é muito acima da nacional. E, como a plantação de tabaco se concentra no Sul do Brasil, foram percebendo que os suicídios estavam ligados à produção de fumo. Estavam ligados à contaminação pelo agrotóxico específico que é exigido pelas fumageiras para essa produção, mas também à dinâmica do endividamento das famílias, que não conseguem fazer frente ao sistema integrado de produção. Todo ano elas precisam comprar insumos e tudo o mais que é exigido pelas empresas de tabaco. No momento da venda, as empresas abatem essas dívidas do total que vão pagar. Quando não dá certo, gera uma bola de neve de dívida. E a matéria chamava de bomba relógio essas condições que levavam aos suicídios. Tudo isso me chamou atenção – como cidadã, primeiro. E, depois, achei que era bastante literário… Me deu vontade de pesquisar, entender bem esse sistema pra criar essa família do livro.

E aí você foi atrás de outras fontes?

Eu comecei a coletar todas as informações possíveis enquanto fazia outras coisas, inclusive escrevi o [romance publicado em 2021] É sempre a hora da nossa morte amém no meio dessa pesquisa. Na pandemia, eu não conseguia criar uma coisa tão longe da minha realidade, então eu dei uma pausinha na criação do Árvore, mas fui coletando… Li muita dissertação de mestrado, teses sobre a plantação de tabaco pra ter todos os detalhes. E, aí, sabendo os problemas eu já imaginava cenas. Depois, passei a investigar rede social, ficar assistindo os vídeos dos adolescentes dessas áreas e vendo os comentários de Facebook dos próprios fumicultores…. O que eles criticavam. Como eles criticavam. Porque também tem uma delicadeza nisso, de não querer se indispor [com as empresas]. E tem muitos que estão indo bem, então também criticam quem critica e fica uma indisposição geral. Então tem uma delicadeza para abordar esse assunto na ficção.

Você também foi ao Rio Grande do Sul visitar as plantações, né?

Depois que eu já tinha bastante material e entendi bem como funcionava – sabia até o nome das ferramentas e tal – fui pra confirmar se estava com a imaginação no lugar certo. E foi muito bom. Visitei uma família em Santa Cruz do Sul que não era rica nem nada, mas também não estava endividada. Eles não tinham começado ainda a colher, então tiveram um tempo para me mostrar, passei ali umas horinhas com eles ouvindo muito o jeito de falar também, daquela região específica. Procurei ambientar o livro num cenário isolado, que tivesse também a dificuldade de acesso à escola, acesso a serviços de atendimento de saúde mental relatada em algumas matérias que li, porque se chove pra caramba não tem como passar carro nas estradas… Então tem umas especificidades de cada local ali e eu fui pegando algumas para retratar essa família específica.

Mais lidas do mês

A história abrange todo o ciclo do tabaco, do plantio até a colheita. Eu queria saber o que te chamou mais atenção nessa lida dos fumicultores e o que te surpreendeu quando você viu todo esse contexto de Santa Cruz do Sul, que é a cidade mais importante da cadeia produtiva do fumo no Brasil.

A cidade é rica, recebe todo o investimento das fumageiras, então é um lugar que idolatra essa produção. É o ganha pão deles, e eles estão felizes com isso. Mas, ainda sim, é um regime de trabalho surreal. As pessoas que eu visitei iam narrando, narrando, narrando e eu pensava, ‘tá, mas quando começa a colheita, que horas que vocês descansam?’. E não tem isso. Não dá tempo, porque se você também não tem dinheiro pra pagar um [trabalhador] safrista, você vai fazer tudo sozinho. 

E a questão da estufa [usada na secagem das folhas, após a colheita]… Tem vários tipos de estufa. Mas grande parte ainda usa a estufa à lenha, e tem muitos incêndios. Vi recentemente uma matéria que relatava um surto de incêndios em Agudo [cidade do RS]. E, para além desse perigo, existe a necessidade de ficar de duas em duas horas cuidando desse fogo, porque qualquer coisa pode desandar a secagem das folhas. Então, é uma vida em cima disso, sem uma noção de descanso, pausa… Ainda há o isolamento, poucas opções de lazer. Isso foi um pouco sufocante de ver – mesmo em uma família que estava bem. Imagina quem tá esmagado de dívidas, dá uma sensação bem bruta.

A dinâmica das dívidas é o que mais me chamou atenção. A própria defensoria lá do Sul, que visitei depois, comentou que não é um contrato [entre fumicultores e empresas] inteligível. Não é um contrato que faz sentido para essas pessoas e, às vezes, nem para o defensor público, que tem que estudar para entender. E normalmente é o homem quem centraliza essa informação, uma informação da qual ele já não se apropria muito. Começa a endividar, ele já não tem mais domínio do que está acontecendo. E a família fica alijada. Então, até isso também incentiva o suicídio, porque quando a coisa vai explodir, o desespero é muito grande.

E é uma ambientação diferente dos seus livros anteriores que se passam num contexto mais urbano…

É bem diferente. Não só a própria ambientação, mas até a velocidade do livro. É muito mais lento. Os meus outros livros têm aquela coisa de entrar dentro do pensamento da narradora, que é veloz, e devorar. Esse já é pra você entrar ali na viagem dos narradores, que não são humanos, e sentir um outro ritmo.


Pois é! Neste livro, você faz um experimento narrativo diferente. Os anteriores eram narrados do ponto de vista das protagonistas, da criança, da arquiteta, da velhinha… No
A árvore mais sozinha do mundo, a família de fumicultores é composta por seis pessoas: o pai, a mãe e os três filhos. E, depois, entra a avó. E são quatro narradores falando sobre essas seis pessoas: a árvore do título, um espelho, uma caminhonete e um equipamento de proteção individual contra agrotóxicos. O que você queria provocar no leitor com esses narradores não humanos e com esses pontos de vista complementares?

Olha, desde o momento que veio a ideia, eu já sabia que seria escrito assim. Meus outros livros são todos narrados pelo pensamento da narradora – o que leva o leitor para dentro desse pensamento. Ao mesmo tempo que eu queria manter a narração em primeira pessoa, não queria dar voz às pessoas ali envolvidas. Eu não poderia falar desses fatos todos a partir do pensamento delas, porque elas não estão necessariamente a par do que está acontecendo. Não poderia entrar tanto no pensamento. Eu queria que a sensação dos fatos viesse a partir do diálogo da família, de uma coisa ou outra que vai dando umas pistas. Porque, em dado momento, as personagens humanas vão compreendendo a gravidade da situação. E eu queria um recurso poético. Um desvio do sentimento clássico de você saber o que é uma dor humana de uma família endividada.

“São espiões privilegiados. Eles têm acesso a informações mais verdadeiras do que o personagem pensa e fala.”

Então o leitor vai passar pelo filtro dos objetos que cercam essa família. Objetos que vêem a intimidade dessas pessoas o tempo todo, em momentos em que essas personagens humanas estão desarmadas. Não sabem que estão sendo observadas, portanto não recorrem a recursos de manipulação. É uma intimidade de quem não sabe que está sendo observado, de quem não se preocupa em impressionar o espelho ou o carro. Então, são espiões privilegiados. Eles têm acesso a informações mais verdadeiras do que o personagem pensa e fala.

E acho que o espelho consegue sacar, por exemplo, muito mais a adolescência do que a própria mãe da menina que está lidando mal com isso. E ele consegue perceber o que ali é uma provocação entre as duas e a mãe interpreta como desamor, perceber de forma mais imparcial essas dinâmicas entre elas. E consegue fazer umas graças ali, umas piadas. Dá pra brincar com vários sentimentos pelo desvio que eles fazem, né? Eu poderia ter uma rota reta de chegada à tristeza dessas meninas, à preocupação desse homem… Mas aí tem um desvio que bate nos sentimentos de coisas e esses sentimentos maximizam as próprias sensações humanas. 

Também por isso eu queria que os narradores fossem localizados em lugares diferentes, tendo acesso a aspectos diferentes da vida daquela família. Então, nas poucas viagens, eu teria a rural pra acompanhar. E uma rural com uma personalidade saudosa, né? Que lembra de outras viagens, de momentos melhores em que eles estavam livres pra passear um pouquinho mais. E a árvore é uma árvore muito devota do ser humano. Isso já foi sendo criado logo de cara, essa sensação de que ela amaria muito essa família e que não teria consciência do quanto daquela intempérie toda que ela estava vendo tem a ver não com aqueles humanos específicos, mas com a humanidade. 

“Imaginar a vida do outro é um exercício das duas carreiras, tanto da literatura como da Justiça.”

Além de escritora, você é defensora pública. Eu queria saber como essa outra camada da sua vida se conectou a essa história.

Sou defensora há 13 anos. Acho que todos os meus livros vão ter um pouco de defensoria, não no sentido de retratar o meu trabalho, mas uma certa noção social de Brasil. Imaginar a vida do outro é um exercício das duas carreiras, tanto da literatura como da Justiça. Acho que ler e escrever, para o operador de Justiça, deveria ser até obrigatório. Sentir no lugar do outro, ouvir um fato, imaginar toda a rede de coisas que levaram a esse fato. Ao atender uma população em massa – porque é um atendimento de massa o da Defensoria – é preciso lembrar que cada pessoa é uma história, humanizar todos os dramas ali. Porque a tendência é tocar pra frente, porque tem o outro esperando. Mesmo que não seja literal a conexão de uma coisa com a outra, acho que tem esse exercício de empatia. Acho que tem muita afinidade. Ainda que a Defensoria não deixe muito tempo para a produção literária. Eu realmente tenho que usar as férias e finais de semana pra escrever…


E você produz muito [Mariana lançou livros em 2019, 2021, 2022 e 2024].

É, eu sou bem rápida.

De todas as personagens, a filha do meio, Maria – numa idade entre a infância e a adolescência – funciona como uma espécie de grilo falante no livro. Porque ela está inserida naquele universo, nasceu plantando fumo, mas também traz um estranhamento próprio de quem ainda não normalizou todas as dinâmicas. O que lembra muito a Maria Carmen, personagem do seu primeiro livro Se deus me chamar não vou. Você pode falar um pouco da Maria e dos desafios de construir personagens crianças? 

Isso da criança foi algo que vi muito na pesquisa. Na época da colheita, os professores conseguem de cara ver quem é que vem de família de fumo porque as crianças chegam exaustas. Elas dormem na aula, alguns não vêm mais… Por mais que eles neguem que tenha [força de trabalho infantil], quando a pessoa está endividada a ponto de não ter mais ninguém, a família inteira é envolvida.

A Maria tem um pouco a ver com algumas matérias que vi, de crianças que queriam muito saber outras coisas e viver outras vidas. Alijadas de tudo no momento em que perdem o acesso à escola, né? Seja no caso da falta de van escolar pro Ensino Médio, em alguns casos por conta de longos períodos de tempestade em que a van não alcança a casa delas. Então isso já me deu a sensação de existir essa menina que não quer perder essa aula. E eu era essa criança que tinha desespero [de perder escola].

Ela é uma Maria Carmen rural. Aquela família vive num silêncio, um negócio meio embrutecido… E os questionamentos dela irritam um pouco, porque dão uma sensação de que eles vão perceber algo que vai tornar a vida infeliz em vez de resolver. A Alice [irmã mais velha], principalmente, resiste a esses pensamentos, né? O que é uma forma justa de viver também. Se a Alice não vê saída, o melhor pra ela é não ficar vendo o que há de ruim.

Mas a Maria, de fato, traz pensamentos de saída. Não necessariamente de deixar o campo, mas de saída para os problemas dali. E ela tem uma ansiedade a mais. Que é uma não confiança, né? Ela, em algum lugar ali, plantou na cabeça que os adultos não têm o domínio da situação. E que eles precisam dela. Porque é ela que está estudando, os outros pararam antes. Então ela se sente pressionada. E é ruim pra ela, não necessariamente está certo. Alguns adultos ali sabem o que está acontecendo, mas não têm muita saída. Ela vai tomando para si muitas atividades adultas. E acaba ficando uma controladora sem ter repertório pra isso. Então é meio esmagadora pra ela essa posição. Acho que ela traz pro leitor essa visão de quem não está completamente imerso na rotina rural.

E tem também a parte da Alice que, na verdade, é mais inconformada com o fato de os pais necessitarem da força de trabalho dela. Então ela tem uma rebeldia não canalizada, né? Ela tem uns discursos mais adolescentes mesmo. E a Maria, que é mais inconformada com o fato de ser esta a vida pra sempre, é a que colabora [na roça] sem questionamento. Então elas têm esse jogo aí. Acho que o livro tem uma redenção da Alice. Ela vai caminhando pro amadurecimento até o auge em que ela vai encontrar um lugar de atuação nessa família.

Assine a Sexta Básica,
nossa newsletter gratuita e semanal

O livro também retrata esses dramas que tomam todas as mulheres, essa pressão estética e essa competição entre as irmãs porque uma é considerada bonita e a outra não…

É que eu acho impressionante como isso molda a nossa vida. Marca demais. Eu acabo repetindo esse tema porque é uma coisa que, na infância, faz toda a diferença. E você pode ter o talento que for, estar fazendo o que for, que sempre vai chamar a atenção o fato de você não ser considerada bonita. E você olha as bonitas e fica pensando: ‘como é a vida delas?’. Uma coisa que não tem cabimento, né? E que realmente te coloca num lugar inferior. 

Isso foi uma questão que perguntei pra uma amiga. Aquela amiga que você sabe que foi bonita também na infância, perguntei se tinha algum lado ruim em ter sido aquela criança protegida pela beleza e enaltecida o tempo todo pela beleza. E ela disse que chegou a ouvir de um professor que não tinha como ser bonita e inteligente ao mesmo tempo. 

“Mesmo quem tá no padrão tem o problema do padrão, né? De continuar atingindo a expectativa dos outros. Mantendo essa expectativa. Então é simplesmente… Simplesmente um inferno.”


Que é uma cena que tem no livro, envolvendo a Alice…

Ela meio que incorporou, né? Isso é fácil de incorporar. ‘Tá, meu papel no mundo então é ser bonita? Não vou ser inteligente.’ Isso tá ali na Alice. Ela tá até se entregando a isso, do ponto de vista de achar que vai trazer dinheiro e glória pra casa a partir do [concurso de beleza] Musa do Sol. Então mesmo quem tá no padrão tem o problema do padrão, né? De continuar atingindo a expectativa dos outros. Mantendo essa expectativa. Então é simplesmente… Simplesmente um inferno.

“A morte é tão central na minha literatura porque ela é muito central na minha vida. Eu realmente sou uma pessoa que não para de pensar nisso.”


A morte está muito presente nos seus livros – e, assim, a morte é mesmo um temaço. Mas ela vai mudando de caráter ao longo da sua obra. No
É sempre hora da nossa morte, ela é inescapável, mas também está em aberto, são muitas variações e possibilidades. No Não fossem as sílabas do sábado, ela funciona como um divisor, que por um lado vai mudar a forma como a protagonista vê e sente o mundo – basicamente a forma como ela existe mesmo – mas, por outro, o fim é o começo de outra coisa. Já no A árvore mais sozinha do mundo, a morte fica à espreita e isso vai criando uma tensão ao longo da narrativa. Qual é a centralidade da morte no seu processo criativo? E o que significa, pra você, tematizar a morte? 

A morte é tão central na minha literatura porque ela é muito central na minha vida. Eu realmente sou uma pessoa que não para de pensar nisso. Tem até uma passagem, acho que é no Sílabas, em que a personagem fala que é muito gostoso os pequenos minutos em que, por alguma razão, você esqueceu que morre. Você não tá pensando nisso, é como se fosse pra sempre… E isso é um prazer que não é perceptível porque assim que você percebe é porque já lembrou que morre. Então você não consegue ter esse prazer e eu acho que sou assim. Todo o tempo. Alguém me chama pra sair, eu já penso no que pode acontecer, algo que vai cair na minha cabeça. E quanto mais feliz eu fico, só fico pensando que vai acabar, que eu tenho que proteger mais ainda a minha vida porque tem coisas felizes prestes a acontecer… Então eu sou realmente muito ligada nisso e acho que vai contaminando todos os temas.

Mas, ao mesmo tempo, acho que esse livro é o mais livre dessa contaminação porque tirei a morte do pensamento e coloquei a morte como um dado da realidade. É um dado social a morte ali. Mas não é uma coisa que incomoda. Eles não estão pensando nisso, ninguém tá com medo de morrer – diferente do que acontece com as minhas outras narradoras.. Eles estão pensando em sobrevivência. Em dar certo. Mas ali, onde a morte é real, ela não é vista como o maior perigo, porque eles estão pensando no perigo de vida mesmo, não de morte. De não ter o que comer, enfim.

E tem gente que reclama do final triste, né? Mas a história veio a partir dessas famílias que estão perdendo suas pessoas por suicídio. Eu me violaria se tivesse partido dessa premissa e chegasse num outro resultado, ainda que eu deixe a esperança aberta. 

Mas, nos próximos [livros], talvez eu tente escapar um pouco mais desse tema. Já abordei bastante. Vamos ver se minha cabeça deixa eu ir pra outro lugar…

Reprodução/Todavia


Nos últimos anos, algumas obras brasileiras têm incorporado a questão ambiental muito diretamente. Penso, por exemplo, em
Os substitutos, do Bernardo Carvalho, e na Extinção das abelhas, da Natália Borges Poleso. Me parece que também o Árvore tem essa pegada, na medida em que aborda problemas relacionados a uma monocultura intensiva em agrotóxicos, e faz isso principalmente do ponto de vista de uma… árvore. Você achou difícil incorporar esses temas à narrativa? 

É uma coisa que todo mundo vai fazendo ao mesmo tempo porque a gente tá vivendo ao mesmo tempo, né? Nós somos frutos desse tempo. Tem o Contra fogo do Pablo Casella, teve o Água turva da Morgana [Kretzmann]; enfim, tudo foi saindo meio que ao mesmo tempo. E, logo depois que eu tinha entregue e estava pronta a edição, teve as tragédias do Rio Grande do Sul que foram muito piores do que retratei do ponto de vista ambiental. E eu já tinha achado que estava exagerando…

Fiquei arrasada. Até que as partes de [produção de] tabaco não foram as mais graves. Algumas cidades foram mais afetadas. Mas a gente é surpreendido pela realidade. Mesmo quando a gente tenta retratar a pior realidade possível, a realidade piora. Então acho que a gente vai produzir muito nesse tema ainda.

“O mais importante precisa ser a literatura. Esse é meu foco sempre.”


E você acha que tem uma certa delicadeza em produzir sobre esse tema, no sentido de preservar a literatura de uma certa militância que muitos de nós temos?

O mais importante precisa ser a literatura. Esse é meu foco sempre. Tanto que o que aparece ali de meio ambiente é sempre na perspectiva da família perdendo tudo, e não necessariamente a árvore entende de onde vem esse problema. Ela coloca de forma que é a natureza que está contra os homens. É um discurso contrário do que a gente quer passar pra frente. Mas, é claro, que dentro da literatura ele faz o sentido dele. 

Também acho que tem várias coisas que os livros promovem, né? Livros literários, ficções que não são calculadas e só funcionam porque não são calculadas. Algumas pessoas me falaram que reataram a relação com a mãe a partir de dois dos meus livros, o Sílabas e o É sempre a hora da nossa morte. E nunca que eu ia calcular isso, né? Se eu tivesse escrito um livro chamado Vamos reatar mães e filhas, isso nunca ia dar certo. Então, na mesma medida, se você construir uma ficção Vamos salvar o planeta, ela não vai se tornar uma ficção e ela não vai mobilizar ninguém, porque você precisa estar desarmado, você precisa estar comovido, você precisa estar em outro lugar… São acidentes as transformações e comoções políticas dos livros, são acidentes de uma literatura focada em arte.

Como foi a recepção do livro?

Muito legal. Fui três vezes esse ano [a entrevista aconteceu em 2024] pro Sul em eventos diversos, e lá chega muito próximo das pessoas. Aqui [no Sudeste] fica todo mundo interessado tanto na parte literária quanto em conhecer uma realidade diferente. Mas lá sempre tem pelo menos umas três, quatro pessoas no grupo que são muito próximas da fumicultura, alguém que morou próximo, tem na família plantadores de tabaco… Uma pessoa me escreveu contando que trabalhou com aposentadoria rural e sentiu ali [no livro] muita coisa do que já tinha visto dos sofrimentos da população local… Outra pessoa me mostrou foto do irmãozinho segurando folha [de tabaco] e ficou muito triste de não conseguir imaginar fumicultores lendo literatura e, portanto, tendo acesso a esse retrato da realidade deles. Cada um traz uma perspectiva.

Tenho recebido mensagens e vídeos do Brasil todo com pessoas muito comovidas com uma história que elas não conheciam e alguns interessados na parte de linguagem também, conversando sobre isso. Acho que é um livro que exige uma entrega do leitor, de deixar a imaginação comprar essa história dos objetos e passar a sentir com eles.

Tem gente que ficou tanto tempo com essa família, deixou essa leitura lenta nos meses e fica pensando neles depois. Então escreve: ‘será que tem outra solução?’ ‘Ele vai voltar?’ Eu quero que elas imaginem, elas querem que eu continue a história.

Está no começo, faz poucos meses do lançamento, mas acredito que esteja tendo um caminho legal. Teve compras para o exterior também, acho que nas feiras literárias outros países acharam muito interessante ter uma história narrada desse jeito. A tradução vai ser muito difícil, desafiadora, mas já vi que é capaz que esse livro cresça um pouquinho também fora do Brasil.


E o pessoal da indústria do fumo? Recebeu críticas daí?

Não, por enquanto não. Eu acho que é muito artístico. Não sou especialista. Não tenho papel nenhum nisso e acho que só mesmo pessoas interessadas em literatura vão ler um livro desses. Não é um filme passando uma mensagem e mesmo eu procurei que a mensagem [do livro] fosse delicada. Quero dizer que tem gente vivendo assim e tem gente lucrando com isso. É apenas um retrato disso.

Artigod “É um regime de trabalho surreal” publicado em O Joio e O Trigo.

​Reportagens – O Joio e O Trigo Leer más 

Scroll al inicio